Pena e Juízo

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas89-135

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27. Pena privada e pública

Ao começar estas investigações se fez referência à identidade ou à diversidade da pessoa que sofre o delito, com aquela que inflige a pena; mas o discurso, sobre este tema, ficou nisso. Agora chegou o momento de desenvolver aquela orientação.

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Quando a mesma pessoa ofendida reage contra o delito, é justo, embora não seja frequente, uma de
finição tão simples disso, falar de pena privada, cujo caráter consiste, pois, na identidade entre o ofendido e o que castiga. Advirto, por escrúpulo, que nesta fórmula, a voz pena está usada no significado mais amplo e menos próprio, compreendendo também a medida de segurança.

Que a evolução do Direito proceda no sentido da substituição da pena privada pela pena pública, é outro dado da experiência, em relação ao qual se deve, agora, estender a reflexão: a definição mais simples da pena pública poderia fundar-se sobre a negação do caráter da pena privada e, portanto, sobre a diversidade entre o que castiga e o ofendido.

A razão lógica da substituição está na necessidade do juízo a fim de que a pena seja adequada ao delito; se a função do instituto penal se expressa dizendo que a soma algébrica do delito e da pena tem de ser igual a zero, este é um modo eficaz para fazer entender

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não só que a determinação da pena implica um juízo, mas qual seja a dificuldade do mesmo; precisamente porque, em última análise, os homens, que operam sobre o plano do finito, não têm força suficiente para este juízo, no Evangelho se diz que não devem julgar; voltaremos mais tarde a esta admonição. É uma verdade manifesta que tal juízo, o qual, ainda mais que a inteligência, compromete a liberdade do juiz, não pode ser pronunciado, felizmente, pela mesma pessoa, que é ofendida. Por isso, mais do que so bre o binômio do ofensor e do ofendido, o problema da pena se coloca sobre um trinômio, ao inserir-se naquele um terceiro; o interesse que na retidão do juízo tem a civitas inteira, explica que a mesma avoque a si esta fun ção, de maneira que a inserção do juiz entre as partes do delito indica precisamente o trânsito da pena privada à pena pública.

As vicissitudes históricas através das quais este trânsito se tenha realizado, é um lado do problema que eu não tenho nem a competência nem, em geral, muito menos

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nas condições em que escrevo, os meios para demonstrar. Pelo restante, ao leitor curioso as investigações históricas já realizadas lhe oferecem a possibilidade de uma discreta informa
ção. Esta, de qualquer forma, ainda quando possa ser útil, não é em absoluto indispensável para a elaboração lógica do problema da pena.

É conveniente, porém, observar que esta evolução, ainda quando deva considerar-se atualmente esgotada, não exclui completamente a pena privada do campo do moderno Direito Penal; a mesma deve ser entendida, pelo contrário, somente no sentido de um amplíssimo predomínio da pena pública sobre a pena privada, da qual sobrevivem ainda interessantes e úteis resíduos: o mais genuíno entre os seus exemplares é, precisamente, a réplica da injúria ou, em geral, da ofensa, mas não o único; na mesma ordem de ideias deve-se colocar a legítima defesa; mas uma investigação diligente em relação a este interessantíssimo tema não ficaria verdadeiramente esgotada com tais figuras.

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28. A pena como processo

Quando, em vez da pena em geral, somente é considerada a pena pública, ou quando, em outras palavras, como ocorre segundo o pensamento moderno, com o nome de pena somente se quer denotar a pena pública, pode-se, portanto, formular o princípio de que a pena se resolve no processo.

O que se chama processo, segundo a linguagem técnica do Direito, é um modo de julgar com a colaboração das partes, ou seja, dos sujeitos do conflito de interesses, que constitui a matéria do juízo. Uma afirmação semelhante se inclui em uma teoria geral do Direito, em particular das fontes deste, à qual não posso mais que refe rir-me, pressupondo a notícia dela. Assim, a palavra processo é usada pelos juristas com um significado conven cional muito mais restrito que o seu significado comum. Chamo a atenção do leitor acerca do tema relativo às relações entre o processo, assim entendido, e o juízo: o processo é uma operação que se considera idô-

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nea para garan tir o juízo de um terceiro sobre o conflito entre as partes.

Neste sentido, o juízo penal é tipicamente processo: se, ainda quando seja rudimentar, este juízo implica, em todo caso, o exame do ofendido e do ofensor, isto basta a fim de que o gérmen processual se manifeste nele; no entanto, o esquema do juízo penal se delineia precisamente como uma intervenção do juiz entre as partes do delito.

A aplicação científica mais destacada desta verdade se refere à relação entre Direito material e Direito processual que, no civil e no penal, é profundamente diversa. O Direito processual civil se pode considerar como a patologia do Direito material civil, o qual, se os negócios se resolvem normalmente, não tem em absoluto necessidade do processo; mas o Direito Penal, pelo contrário, não tem fisiologia; se há um contrato, pode não haver um processo, quanto ao seu destino jurídico cabe que se desenvolva, e se desenvolve, na maioria das vezes, em paz; mas onde há um delito, ali deve haver um processo, e se não se

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segue, as coisas não vão bem. Isto não exclui que se possa fazer também no campo penal uma distinção entre Direito material e Direito processual; mas deve-se construir de maneira diversa daquela que se refere ao Direito Civil; provavelmente não exista outra linha limítrofe entre eles a não ser a que separa a determinação do delito da aplicação da pena.

Com o trânsito da pena privada à pena pública, a identidade, observada no princípio destas meditações, entre o ofendido e o que castiga parece eliminada; o juiz não é, com efeito, e inclusive não deve ser, uma parte do delito. Além disso, quando, na procura do fundamento da pena, o delito se mostrou como uma desordem, apresentou-se uma premissa, da qual se podem derivar interessantes consequências também com referência à relação entre o que castiga e o ofendido: a verdade é que a desordem produz dano não só à pessoa ofendida mas, como se diz, à societas, a qual pode ser entendida em diversos sentidos, ou melhor, em diver sas direções, entre as quais, naquela à qual corresponde, como organização e como pessoa jurí-

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dica, o Es tado: existem também desordens, as quais prejudicam somente a esta sociedade e não particularmente a indivíduos singulares ou grupos menores. Portanto, se quem castiga opera como órgão do Estado, embora sob um diverso aspec to, a identidade entre quem sofre o delito e quem reage contra o mesmo, com a pena, fica manifesta.

29. Cognição e execução penal

Outro passo, na evolução do Direito, tem sido dado com a exceção do processo em duas fases denominadas pelos juristas com as fórmulas da cognição e da execução penal. Empregando estas palavras e referindo-se com elas à diferença, em geral, entre processo cognitivo e processo executivo ou, como a mim me parece que se pode dizer mais eficazmente, entre jurisdição e execução forçada, os que estudam o Direito Penal acreditam saber bastante em relação a estas duas fases; em particular parecem persuadidos de que um sulco profundo separe a comprovação do delito da aplicação da pena.

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É um fato que constitui propósitos diver-sos, julgar se, por exemplo, alguém matou, e deve por isso ser morto, e, por outra parte, ocasionar a morte do mesmo; a cuja diversi-dade de propósitos é justo que corresponda, para o seu desenvolvimento, a eleição de ho-mens diversos, os quais são, tipicamente, o juiz e o carrasco, pelo que é uma verdadeira exigência técnica do Direito Penal a dis tinção entre eles; mas em relação a esta provavelmente devem ser feitas ainda observações de algum interesse.

A primeira se fez já no capítulo anterior (cujo valor será melhor esclarecido daqui a pouco) observando que já o juízo penal é uma pena; com frequência, inclusive, a pena mais grave. No limite entre comprovação do delito e aplicação da pena se descobre assim uma ampla brecha. Se condenar – e até, desafortunadamente, como veremos, somente imputar ou acusar –, é castigar, a cognição penal implica a execução.

Mas também a proposição inversa é verdadeira. Acreditar que a condenação esgote

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o juízo penal é uma das piores superstições que tem escurecido nossa ciência. Já seja enquanto este juízo se projeta sobre o passado, quoad crimen, ou seja, enquanto quoad penam, se projeta no fu turo, detê-lo no limite, que separa a condenação da expiação, é um erro: no primeiro destes sentidos, se a valoração da gravidade do delito depende da capacidade para delinquir – para conhecer a qual interessa, como diz, no entanto, a mesma lei italiana, toda a vida do réu, também no período posterior ao delito – não há uma razão no mundo para limitar o seu conhecimento ao momento da condenação, excluindo dela o período da expiação; e, da mesma maneira, no segundo sen
tido, porque se a valoração da eficácia da pena depende, por sua vez, da reação sobre a capacidade para delinquir, a mesma consegue exercitar, ainda menos existe uma razão para limitar tal valoração a um momento no que, pronunciando-se a sentença, de todas as maneiras a mesma não pode ser feita senão de modo preventivo, excluindo do juízo aquele período da expiação, que consente uma verificação consuntiva.

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Podem-se dar e se dão, sem dúvida, dificuldades...

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