Pena e Liberdade

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas45-88

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10. Correlação entre delito e pena

Na fórmula matemática que nos serviu para esclarecer a função da pena, se o resultado da soma dos dois números que representam, respectivamente, o delito e a pena,

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tem de ser igual a zero, estes dois números, positivo e nega
tivo, devem igualar-se: se dp = 0, é claro que d = p. Em palavras simples, delito e pena devem ser, exatamente, anverso e reverso de uma mesma medalha; a diferença não está mais em ser um o anverso e outro o reverso, ou seja, algebricamente, um um mais e outro um menos.

Agora bem, para conhecer, depois da função, a estrutura da pena, convém meditar em relação a tal igualdade e a tal diferença.

11. Lei de Talião

À primeira vista, dir-se-ia que os dois males, em que respectivamente delito e pena consistem, devem resolver-se em um sofrimento do ofensor idêntico ao sofrimento do ofendido. A esta solução primitiva do problema da pena, vimos já que corresponde ao problema do Talião.

A raiz deste princípio é tão profunda que, não obstante o tão elogiado progresso do instituto penal, a mesma não foi completamente extirpada nos povos civilizados; em particu-

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lar a morte do réu, onde tem sido conservada ou restabelecida pelas leis, é só daquele princípio do que repete verdadeiramente o seu caráter penal; quando, por exemplo, as formas mais graves do homicídio são castigadas com a morte, não se explica de outra maneira a função repressiva desta medida senão infligindo ao ofensor o mesmo mal que ele ocasionou ao ofendido. Se, em rigor, parece que não se possa dizer isto quanto aos delitos que, castigando-se com a morte, são diversos do homicídio, a relação entre eles se estabelece, entre os dois males ocasionados ao ofen sor e ao ofendido, se não com respeito à qualidade, com respeito à quantidade, e daí a pena capital, que se considera como o mal mais grave que se pode ocasionar ao ofensor, parece adequar-se aos delitos, pelos quais o ofendido sofre o dano mais grave que, pelo ofensor, possa lhe ser produzido.

12. Evolução da pena

Mas que à semelhança, qualitativa ou quantitativa, entre o delito e a pena, se deva

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a sua eficácia repressiva, é fruto de uma visão do problema totalmente ingênua e superficial, cuja razão se deixará explícita ao tratar, daqui a pouco, de descobrir esta eficácia. A verdade é que tal semelhança se atribui aos dois termos do binômio um valor aritmético igual, não confere, de maneira alguma, ao segundo, um valor negativo; o erro da lei de Talião está, pois, em somar os dois males em lugar de subtrair o segundo do primeiro. Por isso, hoje em dia, se reconhece universal-mente, ao menos de palavra, a sua incivilidade, até o ponto em que, nas leis modernas, no que se refere à maior parte dos delitos, está abandonada. Quem deseje ter a confirma ção disto pode refletir que, enquanto a sua atuação implicaria igual variedade de penas e de delitos, é um caráter terminante do Direito Penal moderno, a diferença, e até o contraste, do ponto de vista da qualidade, entre o delito e a pena: as variedades do delito vão sendo cada dia maiores enquanto as variedades da pena, com o progresso do Direito, vão sendo cada dia menores; hoje em dia as penas se reduzem, entre os povos verdadei-

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ramente civiliza
dos, ou ao menos parecem reduzir-se à reclusão (entendida em sentido genérico, que compreende toda espécie de pena carcerária; sentido no qual esta palavra será usada sempre aqui) ou à obrigação de pagar uma soma de dinheiro (também em sentido genérico, multa). Uma igualdade, qualitativa ou quantitativa, na relação entre pena e delito, do mal oca sionado às duas partes, fica, pois, excluída.

A questão relativa à origem histórica destas duas penas não apresenta dificuldades: a multa deriva do ressarcimento, o qual, seguindo um conhecido desenvolvimento, pôs fim à pena privada; e a reclusão deriva do cárcere, medida preventiva para assegurar o culpado à justiça. Mas, que instituição se encerra nestes processos históricos? Por que, e até que ponto, estes males ocasionados, ao réu, podem exercer eficácia repressiva sobre o delito e por isso têm caráter penal? Sob a aparente diversidade entre o malum passionis e o malum actionis, pode encontrar-se uma identidade substancial? Se não me equivoco, do

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ponto de vista da estrutura da pena, é este o nó do problema.

13. Equivalência entre delito e pena

A exigência de que os dois termos do binômio penal, delito e pena, sejam equivalentes, é incontestável. A mate mática, dir-se-ia, não é uma opinião: se p + d = 0, não há forma de escapar à equivalência das duas parcelas, na ordem positiva e negativa. Portanto, quando àquele que matou, roubou ou injuriou se lhe infligem anos ou meses de reclusão ou então se lhe fazem pagar milhares ou centenas de liras de multa, mesmo quando os bens – no gozo dos quais o ofensor e o ofendido são lesados – sejam diversos, alguma coisa deve ser comum entre os dois fatos (se o segundo tem que ter com respeito ao primeiro o caráter de pena).

Para resolver logicamente o problema, a via é, pois, a de investigar o tema da equivalência.

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14. A pena como sujeição

Quem se pergunta por que a reclusão é uma pena, no primeiro momento, está tentado responder que estar sempre fechado no mesmo lugar é um sofrimento ou, tecnicamente, a lesão de um interesse. Em geral, assim é: a maior parte de nós, com efeito, prefere mudar com frequência de sede; mas há também homens que à vida de movimento preferem a clausura. Basta esta observação para convir que o caráter penal da reclusão não depende do sacrifício de um interesse, mas da inexistência de outro interesse do recluso que predomine sobre o de mudar de local ou, mais simplesmente, da falta da sua espontaneidade; com efeito, se a clausura for espontânea, não só não será uma pena, mas pode ser até um prêmio.

O mesmo raciocínio vale para qualquer outro gênero de pena. Entregar dinheiro ao Estado é verdadeiramente uma pena se sou obrigado a isso; mas quando se trata de uma oblação espontânea, desaparece o caráter penal. Também o cancelamento, por exemplo,

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de um registro profissional, pode ser uma pena; mas pode também não sê-lo quando, correspondendo a um interesse daquele de quem é cancelado, seja pedido pelo mesmo.

O significado destas simples reflexões é que certas medidas impostas pela lei, as quais se resolvem em pri vação de bens ou lesão de interesses, tanto adquirem caráter de pena quanto não sejam queridas por quem as sofre. Se este as quer é, como se costuma dizer, exercício de liberdade; o verdadeiro caráter da pena não consiste na privação de um bem, mas na sujeição de que a mesma seja fruto.

15. O delito e a liberdade

Ao chegar a este ponto, insere-se, no discurso, o conceito de liberdade, pelo qual o problema da pena está originariamente dominado. Nem este problema nem qualquer outro, que toque os fundamentos do Direito, pode ser afrontado por quem não tenha ideias claras em relação à liberdade. Por isso considero uma sorte, e até um presente da providência, ter chegado a estes estudos quase ao

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final da minha vida, quando assíduas meditações, sobre minhas mais fecundas experiências, tenham me proporcionado tamanha clareza; e posso indicar entre os meus livros, não só a Introduzione allo studio del diritto, mas as mesmas Meditazioni – em aparência tão apartadas da matéria jurídica – como a indispensável premissa das atuais investigações. Segundo o conceito que formei dela, a liber-dade não é a abstrata possibilidade de escolher entre o bem e o mal, porém a concreta potência de escolher o bem, e assim a força de liberação do peso da carne; de onde, se a ação boa é exercício, a ação má é não exercício de liberdade; cada vez que sucumbo, em lugar de superar-me, ao desejo ou, digamos também, à tenta ção, esta não é liberdade, mas servidão. A liberdade, em outros termos, é a capacidade de obedecer ou também de querer, no sentido em que fala dela, o Código Penal italiano.

Na liberdade se pode contemplar, pois, um pressuposto do delito, mas não a sua fonte; melhor, um requisito que a pessoa deve possuir para poder ser réu, mas não um modo

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de ser do espírito que no delito se manifesta. Não há delito sem liberdade no sentido de que quem não pode fazer o bem tampouco pode fazer o mal; mas quem, acreditando fazer o bem, fez o mal, quer dizer que, sendo capaz de resistir, não resistiu. Uma coisa é ser livre, outra é exercitar a liberdade. Quem é servo não pode libertar-se; mas quem é livre pode servir. O delito não é, pois, exercício, mas o não exercício de liberdade.

16. Homogeneidade entre delito e pena

No entanto, em que o delito e a pena sejam iguais, se propriamente não se vê, ao menos se entrevê: são um e outro uma sujeição, ou melhor, o resultado de uma sujeição. É um ingênuo equívoco aquele pelo qual o delito se apresenta como uma manifestação de liber-dade, e se deve ao uso impru dente que deste grande nome se faz com muita frequência; bastaria, para deixá-lo claro a magnífica intuição da linguagem que, ao contrário da bondade, chama maldad (cattiveria); porque ruim

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(cattivo [captivus]) não quer dizer mais que prisioneiro.1Liberdade é força de libertar -se e o delito é o contrário da liberação. Um e outro, pois, o delito, tanto quanto a pena, expressam um sucumbir ou um submeter-se; em acréscimo, uma inatividade ou uma...

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