Pluralismo jurídico, juridicidade e teoria jurídica intercultural no atual panorama da antropologia jurídica

AutorThadeu Augimeri de Goes Lima
Páginas241-268
Direito, Estado e Sociedade n.52 p. 241 a 268 jan/jun 2018
Pluralismo jurídico, juridicidade e teoria
jurídica intercultural no atual panorama da
antropologia jurídica
Legal pluralism, juridicity and intercultural legal theory in the
current scenery of legal anthropology
Thadeu Augimeri de Goes Lima*
Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná,
Londrina, PR, Brasil
1. Introdução
É possível dizer que a antropologia, se cotejadas a sua perspectiva origi-
nária oitocentista e a sua perspectiva atual, experimentou uma verdadeira,
conquanto gradual, transformação paradigmática.
Com efeito, de um saber que, no contexto de sua emergência, viu-se
marcado por inequívoca visão etnocêntrica e voltado a subsidiar teorica-
mente – e assim legitimar ideologicamente – as pretensões expansionistas
e imperialistas europeias, converteu-se, após o processo de evolução cien-
tíf‌ica e depuração crítica verif‌icado no decorrer do século XX, em área do
conhecimento preocupada em af‌irmar uma concepção pluralista e multi-
cultural, respeitadora das características identitárias peculiares dos agru-
pamentos humanos estudados e refratária à tendência de universalização
* Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de
São Paulo (USP). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Es-
pecialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduado em Direito
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Membro-fundador, vice-presidente e
pesquisador do Instituto Ratio Juris - Pesquisa, Publicações e Ensino Interdisciplinares em Direito e Ciências
Af‌ins. Coordenador e professor do curso de pós-graduação lato sensu (especialização) em “Ministério Público
e Estado Democrático de Direito” da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR),
unidade de Londrina. Promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná,
titular no Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Londrina. E-mail: tagl@bol.com.br.
242
Direito, Estado e Sociedade n. 52 jan/jun 2018
das categorias ocidentais modernas e de sua projeção em direção aos povos
outrora reputados “primitivos”, “selvagens”, “atrasados” ou “incivilizados”.
Por óbvio, não se passou diferente com a seara específ‌ica da antropolo-
gia jurídica, cujo foco é a abordagem antropológica do fenômeno jurídico,
em suas mais variadas expressões concretas1. De fato, tal qual ocorreu com
o campo maior do qual provém, esta vertente recebeu progressivamente
novos aportes que vieram a lhe ensejar substanciais transformações episte-
mológicas e metodológicas2.
O presente artigo busca justamente realizar um esforço sintético no
sentido de aproximar e correlacionar três tópicos de destacado interesse
no atual panorama da antropologia jurídica, quais sejam, o tema do plura-
lismo jurídico, o conceito de juridicidade, tal como tratado notadamente
por Étienne Le Roy3, e a proposta de constituição de uma teoria jurídica
intercultural, delineada por Christoph Eberhard4.
1 Orlando Villas Bôas Filho (2010, p. 322) esclarece que, embora o sintagma mais corrente para designar
a disciplina no contexto francófono seja “antropologia do direito”, isso evidentemente não exclui outras
possibilidades de qualif‌icação, tais como “antropologia da juridicidade” e, sobretudo, “antropologia jurídi-
ca”. No entanto, enfatiza a necessidade de se estar atento às nuances dessas expressões, as quais, apesar de
geralmente serem empregadas de forma indistinta, não são totalmente intercambiáveis. Segundo sua lição,
a expressão “antropologia jurídica” teria como escopo delimitar, por razões essencialmente didáticas, o cam-
po particular de estudo de uma disciplina que, tal como a antropologia, é essencialmente holística. Nesse
sentido, o predicado “jurídico”, justaposto ao enfoque antropológico, permitiria a def‌inição dos fenômenos
qualif‌icados como pertencentes ao campo do direito. Assim, a “antropologia jurídica” não se confundiria
com a antropologia do direito, aquela concebida em termos de uma etapa essencial no processo de desf‌i-
liação (désaff‌iliation) da pesquisa antropológica relativamente às “ciências jurídicas” e, por conseguinte, de
negação de uma atitude ancilar que a tornava uma espécie de “satélite” de uma ciência principal denomi-
nada genericamente “direito” (le Droit). Por outro lado, o uso do sintagma “antropologia da juridicidade”,
em razão de sua maior amplitude, serviria para qualif‌icar a abordagem dos fenômenos de regulação que são
tidos pelos membros das diversas sociedades como obrigatórios e, exatamente por isso, sancionados – por-
tanto, jurídicos. Assim, a expressão pretenderia estar mais desatrelada das representações ocidentais acerca
do fenômeno jurídico, aceitando como direito tanto as práticas de regulação próximas da tradição ocidental
moderna como aquelas distantes dela.
2 Esteban Krotz (2002, p. 27) adverte que a antropologia jurídica, como subdisciplina especializada da
antropologia sociocultural, pode ser entendida de duas maneiras. A primeira é a privilegiada na maioria dos
textos clássicos, ou seja, tratar-se-ia de um ramo da antropologia que aborda um campo ou uma esfera social
de algum modo distinguível de outros campos ou esferas sociais. Ao mesmo tempo, todavia, resulta patente
que o estudo das normas jurídicas, suas justif‌icações e suas aplicações em uma dada sociedade revela muito
sobre outros aspectos dela mesma, por exemplo, sobre as concepções hegemônicas do ser humano, da
convivência social, da justiça e inclusive do sentido da vida. Por isso, na segunda e mais adequada com-
preensão, a antropologia jurídica – igual a qualquer subdisciplina – se entenderia como uma perspectiva
específ‌ica elaborada para a captação da realidade social, que dá conta, ainda que de um ângulo particular e
limitado, da vida e das características de uma determinada sociedade.
3 LE ROY, 2012.
4 EBERHARD, 2002.
Thadeu Augimeri de Goes Lima

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT