O poder judiciário brasileiro e os mitos da neutralidade judicial e da democracia racial

AutorJurandir Antonio Sá Barreto Junior
CargoPós Doutor em Direito Internacional pela Université du Quebéc à Montréal (UQAM), em Montreal - Canadá. Pós Doutor em Ciências Jurídicas e Garantias Constitucionais na Universidad de La Matanza em Buenos Aires - Argentina; Professor da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e da Universidade Católica de Salvador (UCSAL)
Páginas295-311
O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO E OS MITOS DA NEUTRALIDADE
JUDICIAL E DA DEMOCRACIA RACIAL
THE BRAZILIAN JUDICIARY AND THE MYTHS OF JUDICIAL NEUTRALITY
AND RACIAL DEMOCRACY
Jurandir Antonio Sá Barreto Junior 1
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a relação dos mitos da neutralidade
judicial e a democracia racial com a postura indiferente do poder judiciário no que diz respeito aos
julgamentos de crimes de discriminação racial. Afirma-se que tanto a neutralidade judicial quanto a
ideia de democracia racial constituem-se em mitos criados para assegurar interesses não perceptíveis,
que, quando concretizados judicialmente, se revelam enquanto obstáculos para a realização de direitos
sociais. O trabalho divide-se em três partes. A primeira delas consiste numa reflexão sobre os aspectos
retóricos das sentenças, a segunda parte trata do mito da democracia racial e a terceira parte se ocupa da
relação do poder judiciário com o mito da democracia racial.
Palavras-chaves: Poder Judiciário; Neutralidade judicial; Sentença; Democracia racial; Conflito
interétnico.
ABSTRACT: This study aims to reflect on the relationship between the judicial neutrality and racial
democracy with the indifferent attitude of the judicial power in which refers to the judgement of crimes
of racial discrimination. It is affirmed that the judicial neutrality, as well as the idea of racial democracy
are myths that had been created to guarantee non-perceivable interests that, when judicially achieved
are shown as obstacles for the holding of social rights. The study is divided into three parts: the first one
about the reflection on the rhetorical aspects of the sentence; the second part deals with the myth of
racial democracy and the third one is about the relationship between the judicial power with the myth
of racial democracy.
Key words: Judicial Power; Judicial neutrality; Sentence; Racial democracy; Interethnic conflict.
1 INTRODUÇÃO
Poucos ainda acreditam que o juiz pode ser neutro em uma decisão judicial, tanto os
operadores do direito quanto os cidadãos mais esclarecidos. Contudo, por força de certa tradição
positivista, que surgiu no século XIX e que se espraia até nossos dias, o dogma da neutralidade
judicial ainda se mantém no horizonte epistemológico da dogmática jurídica.
O Positivismo [com todos os seus referenciais teóricos, como o que diz
respeito à neutralidade do juiz] era a teoria jurídica que se mostrava mais
adequada aos princípios que inspiraram as revoluções burguesas. Assim, não
é sem motivo que ele foi a principal corrente jurídica nos países democráticos
durante o século XIX e manteve essa posição até os dias de hoje.
1 Pós Do utor em Direito Internacional pela Université du Quebéc à Montréal (UQAM), em Montreal - Canadá.
Pós Doutor em Ciências Jurídicas e Garantias Constitucionais na Universidad de La Matanza em Buenos Aires -
Argentina; Professor da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e da Universidade Católica de Salvador
(UCSAL).
O Poder Judiciário brasileiro e os mitos da Neutralidade Judicial e da Democracia Racial
Revista Direitos Fundamentais e Alteridade, Salvador, V. 3, n. 2, p. 295 a 311, jul-dez, 2019 | ISSN 2595-0614 | 296
Na medida em que os positivistas não podiam questionar a justiça ou a
legitimidade das normas estatais, verificou-se que o Positivismo poderia ser
utilizado por qualquer tipo de organização política, mesmo as mais despóticas
e autoritárias. Além disso, como as teorias jusnaturalistas haviam sido
praticamente abandonadas pelo senso comum dos juristas, desde meados do
século XIX, os juízes já não mais podiam deixar de aplicar leis injustas com
base em referências a um direito natural. (COSTA, 2001, p. 279)
Ainda que, ao longo do século XX, tenha o juiz ganhado independência no livre
convencimento de sua decisão, deixando de ser mero reprodutor do texto legal, este, sendo
formado numa tradição positivista, continua preso à literalidade da lei, tendo dificuldade de
enxergar outras perspectivas mais amplas do texto legal no que diz respeito ao contexto social
ao qual se destina. Essa postura relaciona-se à própria formação acadêmica.
A formação oferecida aos estudantes de Direito condiciona, em grande
medida, as posturas que eles assumirão frente às questões jurídicas quando
ingressarem na vida profissional. A tendência atual dos cursos jurídicos é
formar operadores do direito que possuam amplo conhecimento das leis
vigentes e que sejam capazes de manejar os conceitos da dogmática jurídica.
Com isso, produzem-se técnicos capazes de manusear, com habilidade, os
instrumentos dogmáticos, mas não se formam juristas com uma consciência
crítica desenvolvida, capazes de refletir profundamente sobre os fenômenos
jurídicos.
Essa visão tecnicista, que estimula o jurista a pensar-se unicamente como um
profissional que deve manejar seus instrumentos com habilidade, sem
preocupar-se com as suas conotações éticas nem com suas consequências
políticas, é tratada por Habermas como uma nova forma de ideologia.
(COSTA, 2001, p. 301)
O próprio texto legal, repleto de ambiguidades, reflete a condição do Direito, que não
possui uma linguagem rigorosa e unívoca como a ciência que se pretende universal.
O Direito é a expressão mais alta da tradução ideológica do poder. Ele
estabelece os princípios, delimita as condutas, defende atitudes e "ofende" as
outras por meio de sanção.
O Direito é fruto de um "regime" político, de um "governo", que não são
formados por seres abstratos e separados do mundo, mas seres que pertencem
a grupos e classes sociais e que pensam em conformidade com esses grupos,
em virtude de eles terem se instituído a partir de posições que ocupam na
produtividade material. (AGUIAR, 1990, p. 80)
E, ainda nesse mesmo sentido, conforme José Renato Silva Martins (2007, p. 77),
O Direito não é neutro. A partir dessa posição se poderia afirmar que o
operador do Direito que procura a neutralidade está, na verdade, se afastando
da neutralidade na mesma proporção em que se afasta do Direito, pois ao
buscar sua neutralidade torna-se parcial, visto que omisso.
Diante disso percebe-se a impossibilidade da neutralidade judicial, preocupação
própria da perspectiva positivista, que esconde a intenção ideológica de manter o status quo da
realidade social vigente, ao não preocupar-se com questões como a legitimidade e a justiça,

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