O presente fugidio das crises constitucionais: uma interrogação acerca da questão concernindo a Modernidade da Constituição/The escaping present of constitutional crises: an interrogation on the question concerning the Modernity of the Constitution.

AutorDiniz, Ricardo Martins Spindola

Introdução

Qual é o fundamento da supremacia da Constituição? Perguntar por tanto significa interrogar a totalidade conjuntural do direito a partir de um dos seus conceitos fundamentais. Outros textos normativos, como leis, portarias, decretos, e mesmo decisões judiciais parecem ter sua interpretatividade pressuposta na condição de serem letra morta, isto é, na ruptura entre a contingência de sua positivação e o sentido da sua legitimidade. A interpretação dos textos constitucionais, ao contrário, seja metodologicamente, seja como fundamento de sua especialidade, parece se lançar insistentemente às origens daquilo que se interpreta. Para além da referência mais imediata que essa indicação pode chamar, isto é, do recurso aos trabalhos da constituinte para sustentar as interpretações projetadas a partir e em vista do texto constitucional, mesmo que se afaste essa via "originalista", a supremacia da Constituição, e as consequências daàadvindas, pressupõe sua excepcionalidade. É só por ser excepcional que, ao contrário de outras estruturas autoritativas, sua interpretação prático-normativa precisa projetá-la como um texto vivo, no qual se articula a permanência do evento ou momento do qual é ao mesmo tempo gramática e memória.

Quer-se investigar as implicações compreensivas da modernidade da Constituição e da sua normatividade, isto é, os fundamentos que vingam no fato da forma constitucional aparecer como o único modo possÃÂvel de se interpretar e realizar o direito contemporaneamente. Poder-se-ia anotar, justamente, que a continuidade e sucesso de um texto constitucional dependeriam do quão bem ele condiciona a suspensão do imprevisÃÂvel e encobre objetivamente as mudanças que inevitavelmente acontecem àsua margem. Prova de tanto é o esforço exigido para se inscrever na sua textualidade tempos e eventos outros sem que eles se vejam reduzidos ao alargamento da sua fundação, àcontinuidade da sua eventualidade, um contrassenso, sem dúvida, mas, como já indicado, de todo efetivo e constitutivo do horizonte tecnológico do direito moderno. A vigência da Constituição parece, portanto, engendrar, de uma maneira muito peculiar, entre fundação e crise, a introjeção do futuro no passado e a extensão do passado no futuro.

Colocar a modernidade da Constituição em questão, da perspectiva filosófica a que ora se filia significa, portanto, interrogar o seu ser-todo, a totalidade da Constituição, a partir da sua temporalização. Em outras palavras, como a modernidade da Constituição aparece no seu tempo essencial, qual o sentido de defini-la como uma máquina temporal, interrogação que se circunscreve a partir dos conceitos de fundação e crise que marcam o pensamento moderno da origem do polÃÂtico e que continuam problematicamente como vestÃÂgios na linguagem constitucional contemporânea, preocupada com a manutenção do evento da Constituição, com a sua presentidade qua eternidade.

O presente texto circunscreve a questão pelo sentido da modernidade da Constituição àinterrogação da sua referência na literatura jurÃÂdico-constitucional acerca das crises constitucionais. Fundação e crise são os conceitos que marcam o começo e o fim da Constituição. Assim, ao se voltar para os esforços metodológicos da teoria constitucional para esquematizar adequadamente o conceito de crises constitucionais, perguntando pela inteligibilidade e, por essa pergunta, a situação de mundo, enquanto concepção, posição e visão prévias, que sustenta essa esquematização, a presente investigação avança no sentido de uma interpretação genuinamente filosófica da Constituição, assumindo aqui a distinção entre teoria do direito, com uma sua orientação ora implÃÂcita, ora explicitamente tecnológica, e o espanto diante do domÃÂnio da tecnologia que chama, no outro inÃÂcio, pela intenção filosófica.

Tanto historiadores, quanto sociólogos, ou mesmo cientistas polÃÂticos--e os juristas que se formam nesses ofÃÂcios -, justamente pela natureza investigatória de busca a respostas para problemas especÃÂficos, não possuem a mesma disponibilidade para indagações conceituais, na medida em que buscam por respostas, busca que exige ou a suspensão de paradoxos, ou a sua denúncia, mas não direta e centralmente o seu enfrentamento. À filosofia cabe a obsessão pelo aprofundamento do questionar. (HEIDEGGER, 2010: 13-14; 2009: 24-27) E um enfrentamento filosófico dos conceitos de fundação e crise--talvez justamente em razão da sua centralidade e operatividade, por estarem tão prontos-a-mão--como caminho para se questionar a modernidade da Constituição nas suas implicações e fundamentos, no seu sentido, resta ausente. Ausência que se traduz na superficialidade operativa de respostas imediatas ao sentido dessa modernidade--que, em última instância, poderia ser reduzida a uma simples datação -, e que devidamente confrontadas, revelarão a metafÃÂsica da presença que lhes é subjacente, a qual na sua constância dificulta justamente a colocação da questão ora proposta, bem como a potência de resistência a essa teleologia.

  1. O tempo da Constituição

    A programação "onipresente" do direito moderno parece ser engendrada pela Constituição, e, portanto, depende da manutenção da sua excepcionalidade, como justificativa para a redução ou exclusão--movimento que pode ser tematizado como de racionalização--de quaisquer outros contratempos dissonantes para com o seu presente. Na perspicaz e pouco explorada interpretação de Antonio Negri, "as constituições podem se suceder, cada tempo tem a sua constituição, mas o tempo deve ser constitucionalizado sempre. E a diversidade entre os tempos deve ser reduzida a zero. O dispositivo desta redução é temporal, a constituição é uma máquina temporal." (2002: 436)

    Nas palavras de Solon, a configurar, talvez o mais preciso comentário nunca escrito--inclusive por ser anterior ao texto ao qual o projeto como comentário, algo que não deixa de cometer certa injustiça ao seu autor e àpotência de pensamento que se inscreve nessas frases--àenigmática frase de Antonio Negri, "não se pode prescindir de um 'principium unitatis' do sistema, que reconheça o fato da unidade do direito perseverar na diversidade da experiência jurÃÂdica e na heterogeneidade de suas fontes." Ao projetar na "descontinuidade material do direito" uma "identidade formal", para a ordem jurÃÂdica moderna "é como se o tempo não existisse, pois já se produziram todas às 'mudanças' de direito intertemporal na norma-origem (única)." Assim, "a norma origem é indiferente ao momento em que estas alterações ocorrem, desde que tudo venha nela se desembocar. Todos os conteúdos normativos potenciais já estão previstos in nuce na norma-origem que fixa as condições de variação do sistema." (1997: 201-202)

    Tem-se em Ackermann, (1984: 1022-1023, 1040-1042) talvez, a mais transparente articulação da necessidade de manutenção dessa excepcionalidade--que se temporaliza como intemporalidade. Para o autor, a essência do texto constitucional não seria nada mais que a articulação de mecanismos para a manutenção dessa distinção, ao apresentá-lo como uma máquina de dilação temporal entre aqueles momentos de polÃÂtica constitucional, nos quais o povo se fez presente a si mesmo, (1) e aqueles de polÃÂtica hodierna, de disputas faccionais que se devem fazer aquém e sob a égide das decisões fundamentais tomadas naquele momento de presença absoluta (parousia) que se revela e se mantém constitucionalmente.

    Andreas Kalyvas demonstrou suficientemente, (2008) ainda que não a tenha explorado em todas as suas consequências, a surpreendente continuidade entre Carl Schmitt e Bruce Ackermann dessa compreensão temporalmente preliminar àarticulação da linguagem constitucional. Nas palavras de Carl Schmitt, em um momento particularmente importante da Teoria da Constituição, "não existe estado sem o povo e o povo, portanto, deve sempre ser na atualidade como uma entidade pronta-à-mão." (SCHMITT, 2008: 239) O poder constituinte, por sua vez, seria o dispositivo por meio do qual se enquadra o povo, constituindo-o e suspendendo-o concomitantemente, isto é, presentando-o com vistas a realizá-lo. (SCHMITT, 1996a: 28-29; LINDAHL, 2008: 327-330) Suspensão que possibilitaria a redução de qualquer ser-em-comum àcomunidade propriamente presente fundada na projeção de totalidade da Constituição. (2)

    Em suma, o que a proximidade de autores politicamente tão distintos, a vingar, inclusive, na hostilidade declarada de Ackermann em relação àobra de Schmitt, (2004: 1044) posicionados em situações hermenêuticas e abertos para tradições particularmente diferentes parece sugerir, para além de qualquer suspeita de anacronismo, é justamente a ocorrência de uma apreensão antecipativa da existência pressuposta pela operatividade da estrutura constitucional, anterior e condicionante das possibilidades de tematização por um e outro dos problemas que lhe são imediatos e a partir das categorias que lhes estão disponÃÂveis. Por conseguinte, pode-se arriscar a indicação de uma temporalização qua constitucionalização da realidade que determina, efetivamente, a compreensão do começo e do fim do ser-em-comum.

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