A prevalência dos acordos coletivos sobre as convenções coletivas: uma problematização necessária

AutorAna Paula Repolês Torres/Maria Raquel Ferraz Zagari Valentim
Páginas313-321

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1. Introdução

Analisar qualquer alteração a ser implementada pela Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467 de 13 de julho de 2017) implica primeiro uma advertência. Se faz parte da condição humana, como nos diria Hannah Arendt (ARENDT, 1958), a capacidade de inovar, de criar, de realizar novos inícios, não podemos ingenuamente acre-ditar que toda inovação é necessariamente positiva. Da mesma forma como o repúdio irrefletido às inovações pode ser algo problemático, na medida em que pode nos prender a tradições nem sempre adequadas aos tempos atuais, a aceitação imediata do novo como sinônimo de progresso pode nos levar a inesperadas e profundas frustrações. O pensar, a reflexão, são, portanto, essen-ciais para lidar com a disputa entre passado e futuro, de modo a sabermos quando não desperdiçar as possibilidades que o amanhã nos traz, e quando dizer não às inovações que se mostram prejudiciais, tendo em vista as conquistas já alcançadas.

O objeto de nosso estudo é a alteração do art. 620 da CLT, o qual passa a dispor que as condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho. Em seu texto anterior, o citado artigo dispunha que as convenções coletivas de trabalho deveriam prevalecer sobre os acordos coletivos, quando mais favoráveis ao trabalhador.

A leitura da nova norma legal nos traz, de imediato, a ideia de que se trata de uma alteração que nega o princípio da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador, na medida em que não só inverte a diretriz anterior (que impunha a aplicação da convenção coletiva, em detrimento do acordo, em caso de ser mais favorável), mas também exclui qualquer hipótese de interpretação que possa afastar a prevalência do acordo coletivo de trabalho.

Por outro lado, não se pode olvidar que o princípio da norma mais favorável é intrinsecamente vinculado ao Direito do Trabalho, ao seu caráter protetivo, considerando-se a desigualdade existente entre capital e trabalho, desigualdade esta que só tende a aumentar em um contexto de desemprego, onde o pleno emprego, o próprio direito ao trabalho, encontra-se em crise.

Antes ainda de esmiuçarmos esta alteração específica da CLT, devemos ressaltar que essa mudança está inserida em um contexto mais amplo, devendo ser conjugada com outras alterações em nosso ordenamento jurídico-trabalhista, como a prevalência do negociado sobre o legislado e a adoção de formas precarizantes de trabalho, a exemplo do contrato intermitente e a ampliação das possibilidades de terceirização.

Se por um lado as alterações estão nos encaminhando para uma sociedade em que o trabalho será “quase um privilégio”, em que o que importa “é que haja disponibilidade para o trabalho, seja ele provisório, precário ou mal remunerado” (MENEZES, 2017, 119), por outro vemos uma valorização da criação autônoma das normas coletivas, com prevalência do negociado sobre o legislado. Todavia, desde já indagamos: será que estas alterações, vistas como um todo, realmente conduzirão ao empoderamento dos sujeitos coletivos? Ou apenas servirão como instrumentos propícios para negação de direitos historicamente positivados, deslegitimando a própria negociação coletiva?

É importante dizer que essa prevalência do negociado sobre o legislado já vinha sendo implementada pelo Judiciário a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal, o qual passou a desconsiderar, rompendo assim com o “romance em cadeia”, para nos apropriarmos aqui da metáfora de Ronald Dworkin (DWORKIN, 1999), toda uma tradição construída jurisprudencialmente pela Justiça do Trabalho.

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A título exemplificativo, podemos citar os casos da possibilidade de supressão das horas in itinere por acordo coletivo, mediante concessão de outras vantagens, contrariando o art. 58, § 2º, da CLT (Recurso Extraordinário 895759); e a eficácia liberatória geral, com quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas do extinto contrato de emprego, de Programa de Demissão Incentivada estabelecido por meio de acordo coletivo, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado ( Recurso Extraordinário 590415), na contramão do que dispõe o art. 477, § 2º, da CLT.

Tais decisões do STF sinalizam, na verdade, como o “guardião da Constituição”, responsável pelo controle abstrato de constitucionalidade, poderá então analisar a reforma aprovada, caso a questão lhe seja submetida.

Em outro passo, importa registrar que não há de passar desapercebido pela nossa Excelsa Corte a existência de normas expressas em nosso Texto Maior de 1988 quanto ao tema, a exemplo daquelas que estabelecem a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho” como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III e IV); o trabalho como direito social (art. 6º); a valorização do trabalho humano, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, como fundamento da ordem econômica (art. 170); sem excluir outros direitos e garantias “decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, parágrafo segundo).

Assim, feitas tais considerações, passaremos a abordar a norma em estudo propriamente dita.

2. O princípio da especificidade e o abandono da norma mais favorável

Para entendermos o papel das convenções e acordos coletivos do trabalho, assim como o que significa a sempre prevalência dos acordos sobre as convenções, na esteira do que dispõe o novo art. 620 da CLT, deve-se primeiro lembrar que, como se diz no próprio STF, “não se interpreta o direito em tiras” (ADPF 101), devendo a Constituição ser lida como um todo sistemático, o que implica que a interpretação de seus dispositivos, como o inciso XXVI do art. 7º, que reconhece as convenções e acordos coletivos de trabalho, deve ser realizada em conjunto com os outros preceitos, como o caput do mesmo art. 7º, o qual veda o retrocesso social.

As convenções e os acordos sempre foram pensados como forma de aprimorar, de melhorar as condições dos trabalhadores. A própria prevalência do negociado sobre o legislado não é uma novidade, pois caso se configurasse como norma mais favorável, a convenção ou o acordo coletivo deveria ser aplicado, em detrimento da norma-tização heterônoma do Estado. Assim, tendo em vista a especificidade do Direito do Trabalho, que busca equilibrar uma relação essencialmente desigual, construiu-se uma peculiar compreensão da hierarquia das normas, distanciando-se do modelo rígido e inflexível dominante em outros ramos do direito, tendo sido o princípio da norma mais favorável adotado como critério para solução de conflitos entre as normas.

Nesse sentido, ao dispor sobre o modo de solucionar os conflitos entre acordos e convenções coletivas e a hierarquia entre tais diplomas normativos, o art. 620 da CLT, até então em vigor, deu prevalência ao princípio da norma mais favorável, em detrimento do princípio da especificidade. Segundo este último princípio, também conhecido como princípio da especialidade, o acordo coletivo deveria sempre prevalecer, na medida em que seria mais adequado às peculiaridades da empresa e até mesmo dos trabalhadores.

Por ocasião da promulgação da Constituição de 1988, é bom lembrar, houve quem negasse a recepção do anti-go art. 620 da CLT pela nova Carta, em nome do critério da especialidade, para que fosse respeitada a força normativa dos acordos coletivos, entendendo-se que estes seriam sempre mais benéficos, na medida em que levam em conta as especificidades das situações concretas dos empregados e empregadores 1.

Mauricio Godinho Delgado, Ministro do TST, até chega a dizer, sobre esse conflito entre convenção e acordo coletivo, que:

A resposta mais imediata conduziria à prevalência das regras do acordo coletivo de trabalho, por serem especiais, em contraponto aos preceitos da CCT, que teriam, na categoria, caráter geral. Esta conclusão derivaria da teoria geral do Direito Comum regulatória dos conflitos de regras, que informa que a regra especial não se comunica com a geral, prevalecendo na ordem jurídica — a menos que haja sua revogação expressa. Tal critério teó-rico, aliás, foi incorporado pela Lei de Introdução ao Código Civil (art. 2º, § 2º) (DELGADO, 2002).

Ocorre, todavia, que essa lógica civilista não é condizente com o Direito do Trabalho, pois, se no Direito Civil é proeminente a figura do indivíduo, com sua ampla,

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e até mesmo egoística, autonomia, no direito coletivo é o conjunto de trabalhadores, a solidariedade entre eles, que passa a ter relevância. Assim, como nos diz o mesmo doutrinador (DELGADO, 2002), o direito coletivo tende a valorizar os diplomas negociais mais amplos, como as convenções coletivas de trabalho, entendendo-se que estas têm maior inclinação a serem mais favoráveis aos trabalhadores.

Em outros termos, poderíamos dizer que o acordo coletivo nem sempre é mais benéfico ao trabalhador, pois pode ser usado simplesmente como mecanismo para afastar a incidência das convenções coletivas aos empregados de certa empresa. Nessa linha, os tribunais consideraram recepcionado pela Constituição de 1988 o art. 620 da CLT, em sua redação anterior, acolhendo a aplicação do princípio da norma mais favorável, em detrimento do princípio da especialidade. Dessa forma, a prevalência do acordo coletivo sobre a convenção, quando o acordo fosse prejudicial, sempre foi uma exceção, a ser utilizada com cautela, por exemplo, quando a própria convenção autorizasse a celebração em separado de acordo coletivo em casos episódicos e comprovados de crise financeira das empresas.

Na contramão de tal entendimento e...

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