O princípio constitucional da livre concorrência e o processo de globalização

AutorCláudia Maria Borges Costa Pinto
CargoAdvogada
Páginas5-8

Page 5

1. Premissas iniciais

Muito se escreve sobre a livre concorrência, nos mais diferentes contextos e para fundamentar um variado número de teses jurídicas, sejam de cunho acadêmico, sejam relacionadas com litígios de natureza administrativa ou jurisdicional.

Entretanto, poucos são os estudos que abordam o princípio da livre concorrência (e o princípio que dela decorre - da repressão ao abuso do poder econômico1) sob a perspectiva da dualidade dos processos decisórios público e privado (ou econômico).

Processo decisório público é aquele que se situa no âmbito das decisões públicas (políticas coletivas, extramercado).

Processo decisório privado é aquele que se dá no âmbito do mercado.

Tanto o processo decisório do setor público, quanto o processo decisório do setor privado dizem respeito, direta ou indiretamente, às escolhas que os agentes econômicos fazem acerca do emprego de recursos escassos, escolhas que são informadas por diferentes ordens de motivações e princípios2.

A decisão de mercado (privada) é orientada pelo sistema de preços (que seriam os parâmetros para orientar as escolhas dos agentes econômicos privados), ao passo que a decisão pública (política) é lastreada sob o critério político3.

A identificação de polos decisórios teoricamente separados quanto à iniciativa econômica dá lugar ao que Fábio Nusdeo denomina de sistema econômico dual ou misto, característico de sistemas econômicos do tipo ocidentais, nos quais se enquadram, por exemplo, o nosso atual sistema econômico.

Neste tipo de sistema econômico, duas são as explicações para a ação ou presença do Estado na economia:

"[...] Em primeiro lugar, ele atua no sentido de suprir certas disfunções na mecânica operacional do mercado. Age, assim, 'pro' mercado, no sentido de bem fazê-lo se desincumbir de sua missão, sem lhe impor, deliberadamente, padrões de desempenho. Em segundo lugar, ele se faz presente com o fito, aí sim, de impor um desempenho consentâneo com objetivos adrede estabelecidos a nível político."4

No nosso sistema econômico (isto é, do tipo ocidental), ora o Estado age para suprir as denominadas falhas do mercado ou market failure

(estruturais e/ou relacionadas à inadequada sinalização da escassez5), ora age no nível político (fazendo o mercado atender determinados objetivos, estabelecidos previamente por escolhas políticas).

Ou seja, a regulação pública de setores da economia se biparte para: a) suprir as falhas de mercado (ou concorrência imperfeita/ineficiente)6- que pode ser entendida dentro de um contexto em que determinadas condições estruturais do mercado (mercados concentrados, com elevadas barreiras à entrada, com demanda inelástica e consequentemente ineficientes para a oferta de produtos, o que ocasiona a elevação de preços), que permitem um possível abuso de poder de mercado7e b) para a persecução de políticas públicas, voltadas para o interesse coletivo8.

Importa esclarecer que quanto mais relevantes e maiores forem as falhas de mercado menor será a concorrência e maior será o desequilíbrio entre ofertantes e demandantes, abrindo-se o cenário ideal para o abuso de poder econômico, com indiscutíveis prejuízos ao bem-estar econômico e social.

Estas explicações iniciais, ao lado da identificação de polos decisórios (público e privado) quanto às escolhas quanto ao emprego de recursos escassos, ainda que extrajurídicas, têm indiscutível utilidade prática na definição das noções acolhidas pelo Direito, bem assim a compreensão do arcabouço histórico em que certos sistemas econômicos ensejaram a adoção de determinados institutos jurídicos.

Por exemplo, ao examinarmos a intensidade ou prevalência das decisões de natureza pública versus decisões de natureza privada, podemos discernir, no processo evolutivo da organização econômica ocidental, que as oscilações na prevalência de planos decisórios público e privado ora ensejaram tentativas de absoluta separação (v.g. sistema liberal) ora tentativas de aproximação (v.g. sistema neoliberal).

Também tais premissas servem como ferramenta para interpretar-se a transição da relativa neutralidade do Estado (no liberalismo) para uma presença mais marcante no processo econômico (mediante a implantação de políticas públicas que alteraram efetivamente o cenário econômico, interferindo na sua estrutura e funcionamento, v.g. New Deal).

Em outras palavras, quando utilizamos como referencial teórico a prevalência da escolha pública, visualizamos um Estado que interfere noPage 6 processo econômico, afetando os resultados até então naturais e espontâneos (sujeitos à "mão invisível" do mercado), com o objetivo de adaptá-los a metas de política econômica, que foram previamente fixadas para a realização do bem comum (coletivo)9.

Por outro lado, quando há prevalência da decisão privada (o que, na prática, não passa de mera abstração, pois a verdade é que não há neutralidade do Estado, no processo econômico, pois "atuação no campo econômico, o Estado sempre desenvolveu"10e segundo Alvacir NICZ "realisticamente, em nenhum momento o Estado se absteve por completo de intervir na ordem econômica de uma forma ou de outra11), verificamos a implementação de um campo teórico propício para as doutrinas da minimização do Estado.

Embora a utilização desta premissa metodológica não reduza a complexidade das razões que justificam a presença do Estado na economia, ela auxilia ao intérprete encontrar um eixo estrutural que facilita a compreensão do Direito Positivo que se sobressai dos sistemas econômicos, diante da prevalência deste ou daquele processo decisório.

Note-se que o Estado, quando interfere na economia, através de uma política econômica, impõe uma distorção artificial ao mercado, forçando-o a um rumo diverso, acaso a intervenção não se realizasse, minimizando o âmbito da escolha privada.

E a possível reação do setor privado quanto à minimização de seu processo volitivo pode dar ensejo a um movimento de rejeição à escolha econômica pública, gerando instabilidade ou insegurança no mercado.

Daí porque a opção das políticas econômicas a serem implantadas é tormentosa e, se não precedida de um profundo debate e submetida a um processo de amplo escrutínio popular, pode dar lugar à persecução de metas estranhas ao bem comum, privilegiando ideologias ou teorias de grupos minoritários.

Por estes motivos, insere-se a utilidade da fixação prévia dos grandes fins das políticas econômicas, evitando-se a distorção das escolhas públicas.

Segundo os estudiosos, os fins apontados como grandes vetores de uma política econômica são: a) progresso econômico; b) estabilidade econômica; c) justiça econômica; d) liberdade econômica.

É intuitiva a conclusão de que tais fins são absolutamente conexos e interligados entre si, pois não se concebe justiça econômica sem liberdade econômica, não há como existir progresso econômico sem estabilidade econômica.

Fixadas estas premissas iniciais, cumpre examinar a transição para opção para a regulamentação pública dos mercados.

2. Da substituição da mão invisível do mercado pela lei

As "imperfeições do liberalismo, associadas à incapacidade de auto-regulação dos mercados" levaram ao Estado assumir o novo papel de "agente de implementação de políticas públicas", agindo no sistema econômico basicamente sob três modalidades: a) por absorção; b) por direção; e c) por indução12.

Da transição da velha estrutura liberal até a consolidação do welfare state, passando pelo New Dealde Roosevelt, "a mão invisível de Smith passou crescentemente a ser substituída pela mão visibilíssima da lei, do regulamento, das normas geradas no interior dos órgãos burocráticos"13.

Assim, uma grande parcela das decisões sociais que envolviam, direta ou indiretamente, as decisões sobre a distribuição dos bens econômicos escassos foram subtraídas dos mecanismos de mercado, passando para a regulamentação oficial.

Entretanto, embora frequentemente criticadas, a participação e a presença do Estado na economia não representam, necessariamente, uma mazela, senão que uma "inescapável contingência da evolução do próprio sistema de mercado", que afasta o Estado da condição de "interventor aleatório" para um "participante habitual do sistema econômico"14.

3. Do enfraquecimento do processo decisório público em face do crescimento do modo de produção globalizado

Inúmeros são os autores que diagnosticam o enfraquecimento de noções de país, nação e soberania em face do fenômeno da globalização15, apontando, entre outros motivos, a presença de atores ou players de mercado, representados por grandes empresas e...

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