O princípio da anualidade eleitoral e os atos judiciais

AutorPaulo Henrique de Mattos Studart
Ocupação do AutorMestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
Páginas123-158
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O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE
ELEITORAL E OS ATOS JUDICIAIS
Como exposto em partes anteriores deste trabalho, a impossibilidade de
pleno exercício da democracia direta nos Estados modernos levou à necessi-
dade da adoção da atual modalidade de representação política do cidadão, por
escolha de representantes eleitos.
Nesse contexto, surge com especial relevo a necessidade de estabeleci-
mento de um procedimento legitimador da representação política: o processo
eleitoral.
No Brasil, tem-se um sistema complexo, em que a principal fonte de orde-
nação desse procedimento – a lei – está nas mãos dos próprios representados,
ao passo que a condução do procedimento em si está nas mãos dos juízes, que
não exercem representação política através do sufrágio.
Organizada como ramo especializado do Poder Judiciário, a Justiça
Eleitoral tem natureza peculiar, pois, além de presidir as eleições, é dotada de
função normativa e consultiva.
À função normativa e consultiva se soma ainda o crescente protagonismo
do Poder Judiciário, notadamente dos Tribunais Superiores que, no exercício
de sua função típica – a jurisdição –, avançam cada vez mais no debate de ma-
térias antes connadas ao âmbito das discussões políticas, precipuamente no
seio do Poder Legislativo.
Nesse contexto, a abrupta mudança da interpretação da lei pela Poder
Judiciário, e em especial, pela Justiça Eleitoral, seja editando resoluções,
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PAULO HENRIQUE DE MATTOS STUDART
respondendo a consultas, ou mesmo modicando sua jurisprudência, exerce
enorme inuência no quadro normativo que rege o processo eleitoral.
É dentro dessa perspectiva que surge a indagação objeto central da presente
obra, relacionado ao âmbito de proteção do princípio da anualidade eleitoral.
Destinado a conferir estabilização do quadro normativo que rege o proces-
so eleitoral, o princípio em questão, positivado no art. 16 da Constituição de
1988, preconiza que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na
data de sua publicação, não se aplicando à eleição que se realize até um ano da
data da sua vigência.
Embora em termos literais o princípio da anualidade seja dirigido ao
Poder Legislativo da União, a necessidade de se assegurar a normalidade
e a legitimidade do processo eleitoral, garantindo igualdade de chances e
segurança jurídica aos seus partícipes – o cidadão-eleitor, o cidadão-can-
didato e as agremiações partidárias – coloca em evidência o âmbito de
proteção da norma: é ele restrito ao Poder Legislativo e ao processo legisla-
tivo formal? Ou alcança também o Poder Judiciário, notadamente a Justiça
Eleitoral, quando, no exercício de suas atribuições, promove modificações
na interpretação dos preceitos constitucionais e legais que dizem respeito
ao processo eleitoral?
Nos tópicos seguintes, buscar-se-á demonstrar, por meio de casos, como
a modicação da interpretação da legislação de regência do processo eleitoral
pode, tal como a ação do próprio legislador, alterar de forma signicativa o
processo eleitoral.
Em seguida, será exposto como tal questão vem sendo enfrentada e vem
se desenvolvendo no âmbito da jurisprudência, notadamente do Supremo
Tribunal Federal, desde a gestação inicial da ideia de aplicação do princípio da
anualidade eleitoral às decisões do Poder Judiciário, até a incorporação deni-
tiva dessa premissa em voto vencedor proferido no julgamento do RE 637.485
(BRASIL, 2013b) e, mais recentemente, na Resolução TSE n. 23.472 de 26 de
abril de 2016.
Desenvolve-se, ainda, a ideia do princípio da anualidade eleitoral sob pers-
pectiva ampliada, vale dizer, como garantia também contras as modicações
do processo eleitoral pelo Poder Judiciário, delimitando os possíveis critérios
para a aplicação do preceito aos atos judiciais.
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125O PRINCÍPIO DA ANUALIDADE ELEITORAL E OS ATOS JUDICIAIS
5.1 A ação do Poder Judiciário e sua repercussão no regime
jurídico das eleições
A dinâmica de atuação da lei sobre as relações sociais, e em verdade a pró-
pria conceituação de lei como ato normativo primário, indica que tal espécie
de ato estatal é não apenas passível de modicar a realidade social, como ver-
dadeiramente se presta, ou ambiciona, precipuamente a isso.
A característica mais marcante das leis, apontada por grande parte da dou-
trina, é a sua potencialidade para inovar na ordem jurídica, buscando con-
formar de forma nova as relações sociais, possibilitando, criando ou estabe-
lecendo novas relações jurídicas. Enm, interagindo com o estado das coisas,
buscando alterar a realidade, tudo de acordo com uma nova normatividade
por ela inaugurada.
Assim, parece fora de dúvida que a ação do legislador é hábil a modi-
car o processo eleitoral. A seguir, apresentam-se exemplos eloquentes dessa
armação.
Em todas as eleições anteriores a 2012, determinado candidato, mesmo já
tendo cometido grave infração ético-prossional, e tendo cassada sua habili-
tação legal para o exercício de prossão regulamentada, poderia se candidatar,
e muito provavelmente não teria seu registro de candidatura indeferido em
razão da punição antes sofrida. Se era médico, não poderia mais clinicar; se era
advogado, não poderia mais advogar. Mas poderia ser Vereador ou Presidente
da República.
No exemplo acima, objetivando disputar a eleição de 2008, o candida-
to muito provavelmente não teria seu registro de candidatura indeferido ou
mesmo impugnado pela perda da habilitação prossional. É quase certo que
ele próprio não deixasse de lançar sua candidatura em razão da condenação
sofrida no Conselho Federal de Medicina ou na Ordem dos Advogados do
Brasil. Seus adversários políticos ou o Ministério Público possivelmente não
impugnariam seu registro por tal fundamento. Talvez seus adversários fossem
ao fórum buscar informações sobre condenações criminais sofridas pelo can-
didato, objetivando impugnar seu registro de candidatura. Mas dicilmente
iriam ao Conselho Federal de Medicina ou à Ordem dos Advogados do Brasil
com igual propósito. O juiz eleitoral deferiria o registro de candidatura sem
que nunca sequer se discutisse a condenação sofrida pelo candidato no órgão
prossional.
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