Entre o privado, o p

AutorTonucci, Jo

Um dia, que de fato virá, a propriedade privada da terra, da natureza e dos seus recursos parecerá tão absurda, tão odiosa, tão ridícula quanto a possessão de um humano por outro. Henri Lefebvre (2009,

p. 194-195, tradução nossa).

  1. Introdução (1)

    A eclosão da crise financeira global de 2007-2008 tornou patente os nexos entre mercados imobiliários, urbanização e financeirização, chamando atenção para a centralidade da propriedade da terra na economia política do capitalismo contemporâneo. A despeito do silêncio sobre este tema, reconhece-se cada vez mais a terra como principal fonte de rendas em economias avançadas (RYAN-COLLINS ET AL., 2017), o que se expressa no aumento substantivo do estoque de riqueza representada por habitação desde os anos 1980, vis a vis a perda de peso da riqueza em capital (PIKETTY, 2014), e no fato dos empréstimos hipotecários constituírem hoje a principal fonte de crédito nas economias centrais.

    A terra, e particularmente a moradia, mostram-se objetos preferenciais de financeirização por suas propriedades específicas--imobilidade, durabilidade, irreprodutibilidade etc.--que a tornam um excelente colateral e investimento. As últimas décadas foram marcadas pelo estabelecimento de uma nova relação do capital com o espaço sob a hegemonia do rentismo e do capital fictício, no qual a terra deixa de ser apenas valor de uso ou meio de produção para se tornar ativo financeiro, governada pela lógica especulativa de maximização de rendas fundiárias (AALBERS, 2008; HARVEY, 2006).

    Sob o signo da financeirização, a imposição da hegemonia da propriedade privada da terra (absoluta, exclusiva, alienável e escriturada) se dá em detrimento de outras formas de posse e de propriedade, e tem como corolário uma crise global de insegurança de posse (ROLNIK, 2015) marcada por expulsões das populações de seus territórios de toda ordem: land grabs, despejos motivados por execuções hipotecárias e remoções forçadas (muitas vezes violentas) para dar espaço a grandes projetos (SASSEN, 2014).

    A emergência de novas disputas e conflitos em torno da terra reacendeu o debate sobre a questão fundiária no âmbito ao menos do pensamento crítico (BLOMLEY, 2004), tendo como pressuposto o questionamento do individualismo possessivo (MACPHERSON, 1978), ideologia liberal que procura construir a imagem da propriedade privada como universal, natural e eficiente, em oposição à realidade concreta da sua instituição enquanto bundle of rights que precisam ser garantidos pela sociedade e pelo Estado.

    Tanto K. Marx (2013) quando K. Polanyi (2012) haviam chamado atenção para as raízes históricas da transformação da terra em mercadoria através dos processos de cercamento de terras e recursos comuns, interpretados por estes autores, respectivamente, como "acumulação primitiva de capital" ou como formação da "sociedade de mercado". Linklater (2013) fala de uma história complexa da propriedade da terra e da coexistência de múltiplas formas de uso da terra, direitos de propriedade e posse, inclusive de natureza coletiva. Ostrom (1991) também reconheceu a existência e o valor de recursos coletivos de uso comum alternativos à propriedade pública (estatal) e privada. Mais recentemente, até a UN-Habitat reconheceu essa pluralidade fundiária por meio do conceito de continuum of land rights, que inclui formas variadas de posse e propriedade (posse costumeira, usucapião, posse coletiva, concessões, arrendamentos, propriedade registrada etc.) que variam da informalidade à formalidade, apontando para existência de formas não-mercantis de acesso à terra garantidoras de segurança de posse (ROLNIK, 2015).

    No senso comum, entretanto, o termo propriedade continua remetendo diretamente à noção de propriedade privada individual, exclusiva e absoluta. No máximo, admite-se a existência da propriedade pública, invariavelmente confundida com a propriedade estatal. Este entendimento extremamente simplificado contribui para reduzir a complexidade (teórica e empírica) encerrada na ideia de propriedade, assim como para obscurecer suas dimensões sociais e políticas, além de invisibilizar uma diversidade de relações de propriedade não facilmente enquadradas no binarismo público/privado. No âmbito das ciências sociais, com raras e notáveis exceções, a propriedade fundiária é uma "caixa-preta" pouquíssimo explorada: assume-se a priori a plena vigência dos direitos de propriedade, dos mecanismos de mercado da terra e a universalidade e naturalidade da propriedade privada.

    Neste artigo, procura-se discutir alguns aspectos teóricos e históricos da categoria propriedade a partir da ideia do comum. Em termos conceituais, os comuns (ou recursos comuns) podem ser definidos como bens que são coletivamente usados e geridos por uma comunidade por meio do fazer-comum (commoning), um conjunto de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade (LINEBAUGH, 2014), para além do âmbito do Estado e do mercado e das suas respectivas formas de propriedade, pública e privada. As abordagens teóricas e os estudos sobre o comum, sejam em sua vertente liberal institucionalista, sejam nas suas formulações mais críticas (2), procuram investigar e compreender os recursos naturais e terras comunais, as infraestruturas, serviços e espaços coletivos nas cidades, além dos vastos comuns imateriais, de base afetiva, cultural ou informacional.

    Nas últimas décadas, a noção do comum passou também a ocupar um espaço de destaque na gramática e no imaginário político de movimentos anticapitalistas e democráticos que se opõem à subordinação de todas as esferas da vida social e natural à lógica da mercadoria, da competição e da propriedade; nos termos de Dardot e Laval (2017), trata-se de um princípio político antagônico à racionalidade neoliberal. Ao evocar um porvir não capitalista para além da antinomia Estado versus mercado, propriedade pública versus privada, o comum aproxima-se de um campo de práticas mais autônomas e coletivas de produção e reprodução social (DE ANGELIS, 2007; HARDT; NEGRI, 2009).

    Seguindo Dardot e Laval--para quem "não se trata mais de opor simplesmente a propriedade privada e a propriedade pública, mas de questionar prática e teoricamente os fundamentos e os efeitos do direito de propriedade" (2015, p. 261)--,argumenta-se neste trabalho que o conceito de comum contribui para aprofundar a crítica da propriedade privada e da ideologia do individualismo possessivo. Ademais, a referência ao comum abre um espaço para reconhecimento de um amplo espectro de formas coletivas de uso e posse da terra e dos recursos e arranjos não exclusivos de direitos de propriedade. Navegando entre as histórias, instituições, direitos e ideologias relacionadas à propriedade da terra, busca-se aqui oferecer elementos para uma reconsideração crítica da noção de propriedade, visando apreenda-la não como objeto ou relação universal e natural, mas enquanto conjunto heterogêneo de relações jurídicas que expressam configurações sociais histórica e geograficamente determinadas.

    Afora esta introdução, o texto está estruturado da seguinte forma: na segunda seção, são abordados os processos históricos de formação da propriedade privada capitalista a partir dos cercamentos do comum; na terceira, discutem-se definições teóricas sobre a propriedade e os múltiplos direitos que constituem o direito de propriedade privada; na quarta seção, expõe-se uma breve história das ideias subjacentes à ideologia do individualismo possessivo; na quinta seção, apresentam-se exemplos de "formações híbridas e incertas da propriedade", sustentadas por costumes em comum e irredutíveis à apropriação privada; finalmente, a sexta seção discute a relação entre formas de propriedade comum, as definições de propriedade pública e o direito formal. Ao final, e à título de conclusão, aportam-se breves reflexões acerca da relevância da crítica da propriedade sob o capitalismo contemporâneo, assim como sobre o horizonte contraditório de transformação da ordem proprietária no Brasil.

  2. Cercamentos do comum: raízes da propriedade privada

    Dardot e Laval (2015, 2017) observam que o capitalismo tem sua base filosófica, jurídica e econômica na instituição da propriedade privada, que concede o domínio e o gozo exclusivo das coisas ao proprietário, retirando-lhes do uso comum e minando a cooperação. A instituição proprietária opera "autonomizando" a economia, liberando os sujeitos--tornadas indivíduos--dos seus múltiplos laços comunitários, usos consuetudinários e normas e valores sociais coletivos. Doravante, irão se relacionar apenas na esfera do mercado enquanto produtores e consumidores, átomos sociais desgarrados de filiações outras. O corolário desse processo de desenraizamento da economia é a própria abstração econômica do valor em processo permanente de autovalorização:

    A abstração do valor em relação aos valores de uso, da quantidade em relação à qualidade, da pessoa em relação ao grupo, do gozo absoluto diante das necessidades sociais, é parte de um único processo histórico. Polanyi e Marx perceberam o essencial ao considerarem a destruição do comum pelos cercamentos o mais eficaz dos mecanismos (DARDOT, LAVAL, 2015, p. 264). Linebaugh (2008) argumenta que o processo de cercamento é o antônimo histórico do comum, na medida em que a imposição da hegemonia da propriedade privada mina as possibilidades de reprodução social fora do âmbito compulsório do mercado. Historicamente, a propriedade privada constituiu-se a partir de processos variados de expropriação do comum. A transformação da terra e do trabalho em mercadorias a partir do cercamento das terras comunais foi explorada por Karl Marx (2013) no capítulo 24 do Livro 1 d'O capital, intitulado A assim chamada acumulação primitiva, no qual ele investiga, histórica e estruturalmente, as origens do modo de produção capitalista na Inglaterra. Na Inglaterra medieval, as terras comunais (pastos, bosques e florestas comuns) eram desfrutadas predominantemente por uma classe...

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