Procedimentos administrativos consensuais de resolução de conflitos no âmbito das agências reguladoras federais

AutorRomilson de Almeida Volotão
Páginas76-90

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1. Introdução

Um dos principais objetivos da exposição de motivos de um anteprojeto de lei é tratar do seu conteúdo, limitando seu âmbito objetivo de aplicação, definindo sua capacidade inovadora, modificativa ou derrogatória sobre o Direito vigente, devendo apresentar de forma clara e concisa uma declaração genérica das bases e propósitos da norma.1O Capítulo IV de nossa proposta de uma lei geral sobre o processo administrativo no âmbito das agências reguladoras federais independentes traz regras sobre procedimentos administrativos consensuais de resolução de conflitos entre os agentes regulados.

Nessa seara, é de suma importância atualmente proceder a uma releitura do direito administrativo, deixando de lado todo o ranço autoritário que marcou seu desenvolvimento na Europa continental, desde sua origem.

A dogmática do direito administrativo desenvolveu-se com base em interpretações extremas fundadas primordialmente na arbitrária expansão do poder do Estado sobre a sociedade.

Sob essa ótica o Direito era visto como um subproduto da projeção do poder do Estado, que precisava ser estabelecido

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e aplicado de forma coercitiva para ter eficácia.

No entanto, a verdadeira origem do Direito está no gérmen da sociedade, e não na figura do poder do Estado. Nessa mesma linha de raciocínio encontra-se o pensamento de Ulpiano, exposto no Corpo Iuris Civilis e consubstanciado na frase "ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus"; expressão latina que, em tradução livre, significa o seguinte: "onde está o homem há sociedade; onde há sociedade há direito".2A antropologia estuda duas origens para o Direito: como ordenamento imposto pelo Estado (produto do poder), ou como resultado da interação social, produto espontâneo da sociabilidade dos grupos humanos. Assim, o Direito nasce da necessidade vital de organização do grupo, cooperação, defesa mútua, etc. A eficiência da ação conjunta sempre foi essencial para a sobrevivência e prosperidade dos grupos humanos.3O ordenamento imposto coercitivamente pelo Estado possui legitimidade meramente formal, carecendo de verdadeira legitimação. Por essa razão foi tão importante para o Estado de Direito evoluir para o Estado Democrático de Direito. O desenvolvimento espontâneo e gradual de novos paradigmas na seara do Direito é a fonte de legitimação efetiva. Essa espontaneidade de desenvolvimento e evolução deita raízes na já referida gênesis social do Direito. Quando os paradigmas não solucionam mais de forma eficiente os problemas que se apresentam diuturnamente, os pesquisadores e cientistas buscam novas alternativas, as quais são sempre submetidas a testes de eficácia, dada a natural aversão ao novo, os quais, após ultrapassados com êxito, estabelecem novos paradigmas que substituem os antigos.4Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

dentre esses novos paradigmas e as consequentes

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revoluções culturais por eles produzidas, configuradoras da pós-modernidade destacam-se os que reviveram e reforçaram o primado do homem e conquistaram espaço político ecumênico, notadamente após a simbólica queda do Muro de Berlim, retornando a definição das fontes jurídicas à primitiva convicção histórica de que o Direito é uma expressão organizadora da sociedade - e não do Estado -, pois que também este é sua outra criação organizadora.5Nos dias atuais, do chamado Estado pós-moderno6, a figura da Administração Pública no Brasil encontra-se permeada por novos princípios e valores, tais como o dever de eficiência, a busca de resultados e a consensualidade.

Destarte, para fazer frente aos seus novos desafios, e alcançar os resultados esperados e desejáveis no atendimento das necessidades da sociedade, a Administração passou a precisar de uma reformulação em sua forma de atuar.

Conforme destacado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, essa transformação do Estado e da própria sociedade acarretou a mutação de vários institutos do Direito Administrativo brasileiro, fazendo com que evoluíssemos da Administração Pública imperativa para uma fase de busca da consensualidade na tomada de decisões. Ainda de acordo com a lição do mestre, "o conceito pós-moderno de direito administrativo que se delineia nesta abertura do século XXI já passa a se apresentar com características bastante diferenciadas em relação ao conceito anterior", sendo exemplos de características evolutivas desse ramo do direito público, "a de ser mais um direito dos administrados do que um direito do estado", bem como, "a de tornar-se, cada vez mais, um direito da consensualidade, em vez de um direito da imperatividade".7Nesse ínterim, foram criadas no País, a partir de meados da década de 90 do século passado, agências reguladoras de setores específicos da economia, dotadas de autonomia financeira e orçamentária, além de independência em relação ao poder central, o que representa um novo estágio

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de desenvolvimento do direito administrativo e do próprio Estado brasileiro.

A emergência de um Estado Regulador no Brasil reclama a busca por constantes aperfeiçoamentos normativos, tendo como um dos principais vetores desse movimento o atendimento ao princípio da eficiência na gestão pública. Nesse contexto insere-se a presente proposta de um anteprojeto de lei de processo administrativo para as agências reguladoras federais no Brasil.

De acordo com o texto proposto para a lei de processo administrativo das agências reguladoras federais, os concessionários ou permissionários de serviço público, assim como os demais detentores de títulos habilitantes ao exercício de atividades econômicas reguladas poderão requerer à respectiva agência a instauração de procedimento de mediação ou conciliação, visando à solução consensual de controvérsias específicas do setor, por meio da celebração de Termos de Acordo, os quais serão vinculantes e irretratáveis para os interessados.

Vários sistemas jurídicos considerados avançados vêm caminhando firmemente ao encontro da adoção da consensualidade como instrumento de tomada de decisão pela Administração Pública. Na atualidade, a busca da eficiência na prestação dos serviços públicos e concretização de políticas públicas precisa estar na pauta de qualquer governo instituído democraticamente, como uma das formas de assegurar sua legitimidade.

Nessa linha, foi editada nos Estados Unidos a Executive Order nº 13563, em 18 de janeiro de 2011, pela Administração do Presidente Barack Obama, objetivando a análise e aperfeiçoamento do direito da regulação e das regras aplicáveis aos diversos setores da economia, por meio da criação de canais

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de participação da sociedade na tomada de decisões.8O procedimento de participação é precisamente a forma através da qual tem emergido a figura do consenso entre a Administração e os particulares para o exercício de poderes administrativos. O chamado exercício suave de poderes administrativos possui vantagens de ordem material e processual. Além disso, o consenso vai significar uma maior aceitação da decisão e, consequentemente, gerará menos litigiosidade. Em suma, o instrumento convencional em muitos casos permitirá que a Administração atenda aos interesses gerais de forma mais eficaz.9Os acordos sobre o exercício de poderes administrativos substituem a atuação unilateral tradicional da Administração.10Segundo Patrícia Baptista a primeira espécie de consenso administrativo diz respeito aos:

acordos procedimentais, pactuados com o fim de tomar o lugar da decisão unilateral final da Administração ou, ao menos, de determinar previamente o seu conteúdo. Tratase de substituir a tradicional unilateralidade decisória da Administração por uma decisão consensual.11

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Com efeito, a proposta de criação de procedimentos para soluções consensuais de conflitos de interesses no âmbito das agências reguladoras não é propriamente nova. Cuidam de procedimentos convencionais de resolução de conflitos, em maior ou menor intensidade, os seguintes dispositivos legais e normativos: o art. 29 da Lei nº 9.656/98, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); o art. 3º, inciso V, da Lei nº 9.427/96 e a Resolução nº 333/2008, da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a Lei nº 10.233/2001 e a Resolução nº 442/2004 (Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Lei nº 10.233/2001 e a Resolução nº 987/2008, da Agência Nacional de Transportes Aquáticos (ANTAQ), o art. 20 da Lei nº 9.478/97 e o art. 20 da Portaria nº 69/2011, da Agência Nacional do Petróleo (ANP); o art.19, XVII, da Lei 9.472/97, da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL); e a Resolução Conjunta nº 2, de 27 de março de 2001 (Aneel, Anatel e ANP), que aprovou o Regulamento Conjunto de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras dos Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo.

Não obstante, o presente estudo inova ao propor o estabelecimento de uniformização das normas referentes ao procedimento administrativo de resolução consensual de conflitos no âmbito das agências...

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