Processos estruturais para além da retórica: contribuições indianas para o monitoramento de decisões judiciais/Structural litigation beyond rhetorics: Indian contributions to the monitoring of courts decisions.

AutorCasimiro, Matheus

Introdução

Os processos estruturais não são uma novidade no mundo acadêmico. Desde o caso Brown v. Board of Education, referenciado como a origem desses processos, trabalhos de diversos paÃÂses têm tratado sobre o tema. No Brasil, no entanto, a discussão tardou a chegar. Isso não significa que inexistiam processos estruturais na prática, mas sim que não havia um amplo estudo teórico sobre o fenômeno.

O grande interesse acadêmico no tema surgiu em 2015, com o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 347, a qual busca o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema prisional brasileiro. Desde então, outras importantes ações estruturais foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF), como a ADPF no 635, que trata da violência policial nas favelas do Rio de Janeiro; a ADPF no 682, de 2020, para declarar ECI do ensino jurÃÂdico superior; a ADPF no 709, que versa sobre a proteção dos povos indÃÂgenas na pandemia da Covid-19; a ADPF no 742, cujo objetivo é promover a proteção de comunidades quilombolas durante a pandemia; e a ADPF no 822, que pede o reconhecimento de um Estado de Coisas Inconstitucional na condução das polÃÂticas públicas de saúde durante a pandemia.

A crescente utilização de processos estruturais atraiu a atenção de crÃÂticos, que questionam a competência e a legitimidade do Judiciário para intervir em polÃÂticas públicas. Uma das principais objeções levantadas trata da incapacidade técnica do Judiciário para intervir em litÃÂgios estruturais. JuÃÂzes não possuem o conhecimento necessário para criar ou supervisionar a implementação de polÃÂticas públicas. Por essa razão, as decisões estruturais produziriam apenas efeitos simbólicos (1), tendo, no máximo, um valor retórico ao mostrar que os direitos de determinado grupo vulnerável estão sendo violados. Na prática, os juÃÂzes pouco poderiam fazer.

Diante de uma crÃÂtica tão relevante, é importante questionar: há como tornar o processo estrutural um instrumento efetivo àproteção de direitos fundamentais? Tentando contribuir para a resposta dessa pergunta, o artigo analisa experiência da Índia em processos estruturais, iniciada no final da década de 1970 e que permanece em desenvolvimento. A Índia, além de enfrentar problemas socioeconômicos similares aos do Brasil e possuir uma constituição de caráter transformador, semelhante àConstituição de 1988, enfrentou a crÃÂtica da incapacidade técnica do Judiciário, desenvolvendo as comissões sociojurÃÂdicas de investigação.

Como metodologia de estudo, além da tradicional pesquisa bibliográfica e documental, realiza-se estudo jurÃÂdico comparativo, aprofundando o conhecimento sobre a experiência indiana no desenvolvimento dos processos estruturais. Conhecendo o contexto de desenvolvimento dessas demandas, será possÃÂvel compreender a criação das comissões sociojurÃÂdicas de investigação, sua importância no contexto indiano e como elas podem contribuir com os processos estruturais no Brasil.

O artigo está divido em três partes. O tópico 1 apresenta o panorama constitucional que conduziu ao desenvolvimento dos processos estruturais e quais conceitos são importantes para compreender os temas aqui tratados. No tópico 2, estuda-se o desenvolvimento dos processos estruturais na Índia e o papel do Judiciário na implementação dos direitos fundamentais da Constituição indiana de 1950. Por fim, o tópico 3 apresenta as comissões sociojurÃÂdicas de investigação, bem como suas potenciais contribuições para os processos estruturais no Brasil.

  1. Realidades inconstitucionais e os processos estruturais: almejando o impossÃÂvel?

    Desde 2015, diversas expressões têm sido empregadas em trabalhos acadêmicos sobre processos estruturais: litÃÂgios estruturais (VITORELLI, 2018), remédios estruturais (PUGA, 2013), decisões estruturais (ARENHART, 2013), sentenças estruturais (CAMPOS, 2016), dentre outros conceitos, utilizados, muitas vezes, com pouca clareza e precisão. Para não incorrer no mesmo erro, este tópico esclarece os conceitos fundamentais para a devida compreensão do artigo, apresentando, também, as principais crÃÂticas feitas aos processos estruturais.

    Os processos estruturais têm origem no caso Brown v. Board of Education (JOBIM, 2021, p. 110-112), no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a inconstitucionalidade da segregação racional nas escolas do paÃÂs. Contudo, os Estados americanos, especialmente do Sul do paÃÂs, não demonstraram reais intenções de implementar a decisão da Corte. Assim, em 1955, a Corte determinou que os juÃÂzes locais promovessem a dessegregação racial, que deveria ser realizada o mais rápido possÃÂvel (with all deliberate speed). A decisão ficou conhecida como Brown II. Após o julgamento, os processos estruturais foram utilizados em diversos outros casos nos Estados Unidos, inclusive na reforma de prisões e instituições de saúde mental (SCHLANGER, 1999, p. 1994-1995).

    Mas o novo tipo de processo não ficou restrito àjurisdição norte-americana. Hoje, paÃÂses como África do Sul, Argentina, Colômbia, Índia, Bangladesh, Brasil e Sri Lanka possuem processos estruturais. Enquanto nos Estados Unidos essas demandas estiveram muito ligadas aos direitos individuais, violados por graves ações ou omissões estatais, o mesmo não ocorre no Sul Global.

    Tendo em vista o caráter transformador (2) de várias constituições do Sul Global--como a brasileira, a colombiana, a indiana e a sul-africana --, é comum que processos estruturais estejam relacionados não só a direitos individuais, mas aos direitos sociais, econômicos e culturais (DESCs), amplamente positivados nos textos constitucionais desses paÃÂses. Essa é uma diferença importante, que foi percebida pela doutrina indiana e será abordada no tópico seguinte.

    Antes de iniciar o estudo da experiência indiana, é importante diferenciar dois conceitos fundamentais para a pesquisa: litÃÂgios estruturais e processos estruturais. Os litÃÂgios coletivos estruturais são conflitos entre interesses juridicamente relevantes, em que uma das partes é vista enquanto uma coletividade titular de direitos ou deveres (VITORELLI, 2018, p. 340). Contudo, os direitos da coletividade não são violados por uma ação especÃÂfica da outra parte, mas decorrem de um estado de coisas contrário ao direito, cuja mudança depende, geralmente, da reestruturação de uma polÃÂtica, programa ou instituição pública. Os litÃÂgios estruturais são um dado da realidade, isto é, eles existem ainda que o Direito não forneça instrumentos processuais para que sejam tutelados coletivamente (VIOLIN, 2019, p. 219).

    Já os processos estruturais podem ser compreendidos como um conjunto ordenado de atos jurÃÂdicos destinados a obter uma tutela judicial coletiva, capaz de transformar, gradualmente, um estado de coisas A, violador de direitos fundamentais, em um estado de coisas B, apto a promover os direitos que dele dependem (GALDINO, 2020, p. 123). O interesse público desses processos decorre do fato de que a coletividade pleiteia a efetivação de direitos em face do Estado, o que costuma implicar em uma reestruturação de polÃÂticas, programas ou instituições públicas (SERAFIM, 2021, p. 39).

    Por fortalecerem o controle judicial de polÃÂticas públicas, os processos estruturais rapidamente atraÃÂram crÃÂticos, que suscitam importantes objeções (SOUZA, 2021). É possÃÂvel identificar quatro crÃÂticas principais: a ameaça àseparação de poderes, a ilegitimidade democrática da intervenção judicial, a possibilidade de um efeito backlash e a incapacidade técnica do Judiciário para intervir em polÃÂticas públicas (SERAFIM, 2021, p. 54-55).

    A primeira questão levantada contra a intervenção judicial no âmbito das polÃÂticas públicas é o clássico argumento de que o Judiciário, ao proceder dessa forma, usurpa competências exclusivas dos poderes polÃÂticos. Na concepção mais rÃÂgida da separação de poderes, "[...] sempre haverá um núcleo essencial da função que não é passÃÂvel de ser exercido senão pela Poder competente" (RAMOS, 2015, p. 118). Tentando proteger direitos fundamentais por meio da intervenção em polÃÂticas públicas, o Judiciário adentraria nas atribuições do Executivo e do Legislativo, violando a separação de poderes.

    A crÃÂtica está diretamente ligada ao dilema da justiciabilidade dos DESCs. É comum que o Judiciário, ao julgar processos estruturais, veja-se refém do dilema de justiciabilidade dos direitos socioeconômicos, devendo escolher entre uma postura ativista ou de autoconstrição, decisão que sempre leva ou ao embaraço ou ao descrédito institucional (MICHELMAN, 2003, p. 16). Por um lado, a instância judicial intervém diretamente na formulação de polÃÂticas públicas, ainda que não tenha a capacidade técnica necessária para reorganizar as prioridades do orçamento público. Por outro, adotando uma postura deferente, pode esvaziar o conteúdo normativo dos DESCs, deixando-os dependentes da discricionariedade do Poder Público. Para os crÃÂticos, a resposta correta àtensão é uma posição de autoconstrição judicial, evitando-se decisões consideradas ativistas.

    Diretamente ligado àprimeira crÃÂtica, a objeção democrática afirma que, além de não...

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