A protecao dos direitos a identidade da crianca intersexo: um olhar para alem do registro civil/The protection of the intersex child identity: a look beyond civil register.

AutorSouza, Andrea Santana Leone de

Introdução

Historicamente, o Direito Civil foi vinculado àperspectiva patrimonial, desconsiderando as discussões existenciais das pessoas humanas. A preocupação com os direitos extrapatrimoniais se fortaleceu no movimento pós Segunda Guerra Mundial, alcançando a Constituição Federal de 1988 e culminando em um capÃÂtulo especÃÂfico no Código Civil de 2002, intitulado direitos da personalidade. O capÃÂtulo integra os direitos ao nome, àimagem, àintimidade, àprivacidade, além do direito ao próprio corpo. Dentre esses, que são aspectos da identidade, estão os direitos fundamentais.

Com base em uma perspectiva identitária hegemônica, muitos corpos são silenciados dadas as suas especificidades, haja vista as corporeidades Intersexo. Em meio a uma multiplicidade de configurações corporais, o nascimento de crianças com genitália ambÃÂgua, por exemplo, configura uma situação complexa que, dada a natureza interdisciplinar, demanda análise diferenciada do padrão identitário classificatório binário (sexo masculino-feminino). Nesse sentido, urge a necessidade de analisar essa situação àluz do direito àidentidade.

No âmbito das ciências sociais aplicadas, o tema "criança intersexo" ainda não tem sido discutido amplamente. O interesse em tratar do tema emergiu de duas situações objetivas. Uma situação a partir do aprofundado levantamento de artigos da área. Constatou-se que os trabalhos publicados têm abordado a temática a partir de perspectivas diferentes das que privilegiam os direitos da personalidade da criança intersexo. A outra situação advém da própria Lei de Registros Públicos vigente no Brasil (BRASIL, 1973), que ainda reflete o padrão identitário binário, desconsiderando as demandas dissidentes.

A partir dessa constatação, emergiu o seguinte problema de pesquisa: de que forma é garantido o registro civil da criança intersexo na perspectiva do direito àidentidade? Dessa maneira, o presente artigo objetiva discutir a garantia do registro civil da criança intersexo na perspectiva do direito àidentidade.

Para resolver esse problema de pesquisa, optou-se por um método de abordagem de natureza qualitativa, que possibilita uma análise mais profunda das relações, dos processos e dos fenômenos que não serão reduzidos àoperacionalização de variável (MINAYO, 2006). Foram selecionados procedimentos para robustecer uma construção cientÃÂfica da resposta àpergunta norteadora: revisão de literatura, revisão legislativa e entrevista semiestruturada.

A primeira fase constituiu-se de uma revisão de literatura, materializando-se no levantamento da produção cientÃÂfica sobre a temática relativa às pessoas intersexo e desdobramentos sociojurÃÂdicos. A investigação contou com a metodologia de buscas na plataforma CAPES, por meio da seleção de teses, dissertações e artigos sobre o referido tema.

Quanto àsegunda fase, essa compreendeu o levantamento normativo, cuja seleção se fez por meio de bases legislativas, pela disposição dos seguintes descritores: criança, intersexo, Direitos Humanos e Direitos da Personalidade.

Por fim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas (1) com pessoas intersexo, maiores de 18 anos, cadastrados no Ambulatório de Genética do Hospital Universitário Professor Edgar Santos (HUPES), diagnosticadas com Hiperplasia Adrenal Congênita. Adotou-se para escolha dos entrevistados o uso da técnica de casos crÃÂticos (FLICK, 2009). Dentre os casos indicados pelos profissionais do ambulatório de genética, foram definidos critérios a partir da identidade de gênero. O primeiro caso no qual a identidade de gênero se alinha ao sexo que foi designado ao nascimento, enquanto no segundo caso, a identidade de gênero não se alinha ao sexo designado ao nascimento.

  1. Direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade: além do âmbito médico.

    A Constituição (CF) adotou, entre os seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana. ConstruÃÂdos ao longo da história, os direitos da pessoa representaram, após a Segunda Grande Guerra Mundial, um ideário consubstanciado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (ONU, 1948). A preocupação em garantir a efetividade dos direitos humanos (DH) constituiu um desafio do século XX (BUERGENTHAL, 1995; PIOVERSAN, 2005) e continua a exigir empenho para dar efetividade às disposições da Carta das Nações Unidas (ONU, 1948).

    A DUDH garante a dignidade da pessoa humana como atributo inseparável aos membros da famÃÂlia humana (SICHES, 1959). O conceito de dignidade humana está relacionado àconcretização do princÃÂpio da liberdade individual (CASTÁN, 2007). Orienta Felippe (1996, p. 67) que a inserção do princÃÂpio fundamental da dignidade humana na CF "significa representá-la empiricamente. Agregando-se nas normas infraconstitucionais e nas próprias normas constitucionais, dados da experiência social".

    Na acepção de Kant (2003), o conceito de dignidade estaria estreitamente vinculado ao conceito de liberdade, pois a autonomia seria essencial para a dignidade da pessoa humana. Ao discutir o fundamento dos DH, Comparato (2013, p. 64) destaca a relevância da compreensão filosófica da pessoa humana enquanto "supremo critério axiológico". Na compreensão de que o "conceito de pessoa aparece como um norte a orientar toda a vida ética" o autor (COMPARATO, 2013) articula a dimensão de cada etapa histórica e a perspectiva de que os valores também refletem o seu tempo.

    Sobre a clássica distinção que separa os DH e os direitos fundamentais dos direitos da personalidade, assevera Delgado (2006) que essa classificação acarreta dificuldades para a proteção plena da pessoa humana. Considera-se inviável entender a complexidade e o alcance dos direitos da personalidade em função de sua restrição àconcepção privada, sem que sejam vinculados aos direitos humanos e aos direitos fundamentais. Neste sentido, Oliveira e Muniz (1980, p. 228) recomendam "vincular a noção de direitos da personalidade ànoção de direitos do homem" com o fito de conferir a real amplitude aos direitos da personalidade.

    Para Pontes de Miranda (1955, p. 07), a partir da teoria dos direitos de personalidade, "começou, para o mundo, nova manhã do direito". É uma afirmação que revela a importância desta classe de direitos para a revalorização do ser humano, em especial no campo do Direito Civil. Trata-se de direitos que visam garantir o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, prevendo a proteção dos modos de ser da pessoa. Nesta vertente, num ramo de tradição tão patrimonialista, como costuma ser o Direito Civil, pode causar uma alteração de eixo axiológico, pondo o foco sobre a valorização da pessoa humana, deixando periféricas as relações puramente patrimoniais que sempre ocuparam a atenção dos civilistas.

    Os direitos da personalidade (DsP) constituem categoria especial de direito, diferente dos direitos obrigacionais e dos direitos reais. Por meio dos direitos de personalidade se protegem a essência da pessoa e suas principais caracterÃÂsticas. Os objetos destes direitos são os bens e valores considerados essenciais para o ser humano. São caracterizados por uma não exterioridade e constituem categorias do ser, não do ter (BORGES, 2007).

    Os DsP tutelam os direitos subjetivos e visam a proteção "de valores essenciais da pessoa, no seu aspecto fÃÂsico, moral e intelectual" (AMARAL, 2008, p. 283), classificando-os como: direito àintegridade fÃÂsica (direito àvida e direito ao próprio corpo), direito àintegridade intelectual (direito autoral) e direito àintegridade moral (direito àidentidade pessoal, direito àhonra, direito ao recato, direito àimagem e direito ao nome).

    Os DsP constituem uma série aberta de direitos, com fundamento no artigo 5, parágrafo 2, da CF, que garante a proteção de qualquer situação que venha a expor a dignidade da pessoa humana (BORGES, 2007). Entende Borges (2007) que a impossibilidade de exaurir as possÃÂveis violações aos DsP decorreria da evolução e constante mutação da sociedade que geram situações inéditas demandando a proteção do Estado.

  2. Direito àidentidade: para além do direito registral

    A noção de direito àidentidade pessoal, segundo Moraes (2000), transborda a tutela do direito ao nome e alcança as inúmeras situações decorrentes deste direito. Salienta a autora que na conceituação do direito àidentidade é necessário abranger duas instâncias: a estática e a dinâmica. Nesta vertente, Moraes (2000, p. 72) entende que "a identidade estática compreende o nome, a origem genética, a identificação fÃÂsica e a imagem; a identidade dinâmica se refere àverdade biográfica, ao estilo individual e social da pessoa, isto é, àquilo que a diferencia e singulariza."

    O direito àidentidade corresponde, portanto, a uma singularidade diferenciadora que confere o perfil único do sujeito. Identidade é constituÃÂda, portanto, a partir de um conjunto de atributos.

    Schreiber (2011, p. 205) reforça que "o nome representa bem mais que o sinal de reconhecimento do seu titular pela sociedade: o nome estampa a própria identidade da pessoa humana". Afirma que esta denominação própria representa um sistema complexo de situações que interferem integralmente na vida do ser humano.

    Este autor destaca, ainda, a importÃ...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT