Proteção ou Discriminação? Passando a Limpo Algumas Normas de Tutela do Trabalho da Mulher

AutorFlávio da Costa Higa - Regina Stela Corrêa Vieira
Páginas100-115

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1. Introdução

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.1

A igualdade sempre foi um tema bastante caro e espinhoso para a humanidade. Se, por um lado, todas as pessoas são diferentes e têm o direito de reivindicar essa distinção quando a igualdade for um fator de injustiça, por outro, não se pode ignorar que também são iguais e devem ter essa igualdade preservada quando a diferença constituir critério de discriminação. Assim, pode-se afirmar que o progres-

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so da civilização tem sido marcado pela tentativa de aprimoramento na correção de distorções injustificadas, numa caminhada de passos trôpegos e pendulares em busca da sociedade justa, livre e solidária que se vislumbra ao horizonte.

Aristóteles, em um de seus mais polêmicos textos, sustentou que havia pessoas cuja vocação natural era a escravidão e, portanto, o que de melhor se poderia fazer por elas era apoderar-se de suas liberdades, pois elas não saberiam como administrar as próprias vidas2. Em relação à mulher, afirmou categoricamente que "o macho está acima da fêmea", do mesmo modo que "o mais velho, quando atinge o termo de seu crescimento, está acima do mais jovem". Segundo ele, na ordem política obedece-se e comanda-se alternadamente, porém, "quanto ao sexo, a diferença é indelével: qualquer que seja a idade da mulher, o homem deve conservar sua superioridade"3.

Na França do final do século XVIII, embora os revolucionários tenham pregado "igualdade, liberdade e fraternidade", excluíram as mulheres dos ideais preconizados e mantiveram a escravidão em todas as colônias. Em 1793, Olympe de Gouges, em resposta à versão que, autointitulada universal, dirigia-se apenas aos homens em sentido estrito, redigiu a Declaração Universal dos Direitos da Mulher e da Cidadã4, na qual defendia a extensão de vários direitos às mulheres, casadas ou não, dentre os quais a propriedade, a segurança e a liberdade de expressão. Sua corajosa atitude provocou a ira dos jacobinos, que a condenaram à guilhotina5.

A justificativa para a exclusão das mulheres do documento francês que proclamava a igualdade entre todos retomou o discurso aristotélico, baseando-se no

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único argumento aparentemente plausível, o da diferença entre os sexos. Segundo Michelle Perrot,

Essa exclusão das mulheres pouco condiz com a Declaração dos direitos do homem, que proclamava a igualdade entre todos os indivíduos. As mulheres não seriam ‘indivíduos’? A questão é embaraçosa; muitos pensadores - como Condorcet, por exemplo - pressentiram-na. Única justificativa: argumentar sobre a diferença dos sexos. É por isso que esse velho discurso retoma no século XIX um novo vigor, apoiando-se nas descobertas da medicina e da biologia. É um discurso naturalista, que insiste na existência de duas ‘espécies’ com qualidade e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos.6

A partir da percepção das mulheres como "excluídas da história", desenvolveram-se teorias feministas afirmando que os papeis atribuídos aos sexos não são determinados biologicamente, mas pelo modo de produção de determinada época. Assim, a divisão sexual do trabalho, que associa o homem ao espaço público e ao trabalho produtivo e a mulher ao trabalho reprodutivo na esfera privada, delimita os papeis na sociedade e os hierarquiza, de modo que ao trabalho da mulher é atribuído valor inferior7.

Nesse sentido, a categoria "gênero" é fundamental para a análise histórica, pois se contrapõe ao chamado "sexo", que representa a condição orgânica que distingue o macho da fêmea, referindo-se ao código de conduta regente das relações sociais entre homens e mulheres, ou seja, ao "modo como as culturas interpretam e organizam a diferença sexual"8. Desse modo, as representações do gênero não são "naturalmente" ligadas ao sexo, mas derivam da construção histórica do sexismo na sociedade, altamente refietido e estruturado no Direito.

Basta ver que o Código Penal italiano de 1930 punia apenas a mulher pelo crime de adultério9. Supunha-se, entretanto, que com a promulgação da Constituição de 1948 - a qual afirmava categoricamente a dignidade paritária entre todos os cidadãos e a igualdade perante a lei, sem distinção de sexo10 - tal regramento estaria

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imediatamente fadado ao oblívio. Contudo, os instrumentos de perpetuação do jugo patriarcal não costumam ceder qualquer parcela de seu poder com facilidade. Numa decisão constrangedora do início da década de 1960, a Corte Constitucional italiana declarou a legitimidade constitucional do aludido dispositivo, sob três fundamentos: i. A mulher, exemplo de retidão e castidade sexual, turbaria psiquicamente os seus jovens filhos ao ser vista nos braços de outro homem; ii. A mulher, quando trai, introduz em sua prole um filho ilegítimo, ao passo que o homem, na mesma situação, gera um filho fora do seu lar; e iii. O homem, naturalmente mais violento, pode ter reações criminosas diante do adultério da mulher11.

O Direito do Trabalho também refiete esse sexismo, carregando até hoje marcas da discriminação e do preconceito12. A Suprema Corte norte-americana, ao apreciar uma lei do Estado de Illinois que vedava o exercício da advocacia às mulheres, no caso Bradwell v. The State - 83 U.S. 130 (1872), afirmou que a sua constitucionali-dade decorria de Lei do Criador. De acordo com o voto do Justice Miller, o homem deveria ser o protetor da mulher, cuja timidez e delicadeza eram incompatíveis com o exercício de determinadas profissões e lhe atribuíam por destino supremo e missão de cumprir os nobres e benignos ofícios de esposa e mãe13.

Três quartos de século mais tarde, a mesma Corte afirmaria a constitucionalidade de uma Lei de Michigan que proibia as mulheres de trabalhar em bares, ao fundamento de que as vastas transformações na posição social da mulher não vedavam que o Estado demarcasse uma fronteira clara entre os sexos no que dizia respeito ao comércio de bebidas alcoólicas14.

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2. A mulher na legislação trabalhista brasileira

A CLT, desde sua edição, é composta por uma série de normas expressamente destinadas à proteção do trabalho da mulher, concentradas em capítulo específico (Capítulo II do Título II) e divididas por temas em cinco seções: duração e condições do trabalho, trabalho noturno, período de descanso, métodos e locais de trabalho e proteção à maternidade.

Dentre esses dispositivos, o exemplo mais citado15 16 para ilustrar o histórico legislativo de discriminação de gênero no âmbito laboral é o parágrafo único do art. 446. Em vigor até 198917, sua redação concedia ao marido a faculdade de pleitear a rescisão do contrato de trabalho quando a sua continuação fosse "suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família ou perigo manifesto às condições peculiares da mulher"18, rectius, atrapalhasse na execução dos afazeres domésticos. Dessa forma, reforçava o papel da mulher de cuidado da família, criando um meio legal para evitar que o mercado de trabalho a afastasse de seu "lugar" na esfera privada.

Vale dizer que já existia na CLT a previsão do art. 5º, segundo a qual "a todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo", mas esta igualdade possuía viés estritamente patrimonialista: bastava que se pagasse idêntica remuneração a homens e mulheres que a legislação trabalhista estaria atendida no particular19. Ignoravam-se, assim, as diversas dimensões da igualdade, bem como a

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discriminação em outras esferas laborais, como nos critérios de admissão, condições de trabalho, motivação da dispensa etc.

Com a Constituição de 1988, uma série de princípios passou a reger o ordenamento jurídico brasileiro, como a proibição de toda forma de discriminação - inclusive em relação ao sexo (art. 3º, IV e art. 5º, I) - e a declaração da igualdade entre homem e mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5º), dando início a um processo de adaptação do restante do sistema normativo. Parte desse processo, a Lei n. 7.855, de 1989, revogou os dispositivos que limitavam o trabalho feminino, dentre os quais o art. 379, que restringia o trabalho noturno da mulher, e o art. 387, que proibia o trabalho da mulher em subterrâneos e em atividades perigosas e insalubres. Além disso, foram inseridas regras de combate à discriminação e aperfeiçoados os artigos referentes à proteção da trabalhadora mãe.

Apesar dessas mudanças, mantêm-se em nosso ordenamento jurídico disposições relativas ao trabalho da mulher falsamente protetivas, que desqualificam as normas que deveras colaboram para a promoção da igualdade de gênero. Por conta disso, propõe-se, doravante, o escrutínio de alguns dos dispositivos que mais geram debates no meio jurídico por preverem diferente tratamento de homens e mulheres, fugindo da leitura que desconsidera as relações sociais e históricas e insiste em afirmar a superação da desigualdade entre homens e mulheres nos dias atuais.

3. Regramento constitucional da aposentadoria

As regras de concessão de aposentadoria no Brasil outorgam o direito ao jubilo da mulher de forma mais precoce do que ao homem (CF, art. 201, § 7º)20, prescrevendo cinco anos a menos de contribuição na aposentadoria por tempo de serviço e cinco anos a menos de vida na aposentadoria por idade21.

Partindo do princípio de que tais regras se baseiam no fato de a mulher ser uma vítima histórica de discriminação, tendo mais dificuldades de acesso e manutenção no mercado de trabalho, questiona-se se hoje em...

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