Protestos: questão de políticas, não de polícia/Protest: is a matter of public policies, isn't a matter of police.

AutorPenido, Ana

Introdução (1)

A onda de protestos sociais ocorrida em 2019 na América Latina reacendeu a discussão sobre a temática no continente. Como não ocorria desde o final dos anos 1980, de maneira simultânea em toda a região, Venezuela, Chile, Colômbia, Haiti, Equador, BolÃÂvia, Argentina e Uruguai viram suas ruas tomadas. Os protestos foram variados quanto às pautas, organicidade e duração temporal. Se outubro significou um recorde em termos de mobilizações contrárias aos impactos do neoliberalismo, novembro se iniciou com um golpe contra o ex-presidente Evo Morales na BolÃÂvia, que contou com apoio nas ruas de alguns segmentos sociais bolivianos (Tricontinental, 2020). Em alguns casos, ocorreram conflitos de grande intensidade entre os protestantes e as forças de segurança (2) estatais. PaÃÂses como Chile e Colômbia, que há algum tempo não viam a ocupação massiva das suas ruas com reivindicações polÃÂticas, foram "surpreendidos" por esses eventos.

Há três caracterÃÂsticas comuns a maioria dos protestos sociais analisados. A primeira, é a crÃÂtica àestagnação econômica e àretomada ou aprofundamento do projeto neoliberal no continente, denominado por alguns autores processo de recolonização, baseado na financeirização das economias e venda de matérias-primas, acompanhadas por reformas trabalhistas, previdenciárias, fiscais entre outras que ampliam as desigualdades internas aos paÃÂses (Tricontinental, 2019).

A segunda, é uma crescente insatisfação de novos atores polÃÂticos com a capacidade dos canais institucionais absorverem o desejo pela participação polÃÂtica--a democracia que parecia em processo em consolidação no continente nas últimas duas décadas, mostrou-se menos substantiva e capturada pela dinâmica estritamente eleitoral da democracia formal. Nessa insatisfação inclui-se o desapontamento com os mecanismos de democracia participativa pós governos progressistas na América Latina, que ofereciam uma possibilidade de luta 'por dentro do Estado' (Tatagiba 2010).

A terceira é a maneira como os governos reagiram: largo emprego do uso da força, que derivou em elevado número de prisões, feridos e mortos, especialmente quando os protestos envolviam as classes populares. Diante de instituições frágeis, a violência aparece como um mecanismo de resolução de conflitos (Gadea, 2011). Além do momento exato de emergência dos conflitos, a criminalização das ações e a militarização das respostas também ocorre a posteriori, através de medidas legislativas e judiciárias (Artigo 19, 2018).

Os protestos e as respostas estatais violentas a eles não são um fenômeno novo, assim como as violações aos direitos humanos (DDHH) e a fragilização da legitimidade dos governos que adotam saÃÂdas autoritárias. Existe uma tendência no aumento dos protestos diante da crescente incapacidade estatal para garantir o bem-estar e os direitos (inclusive de influenciar nas polÃÂticas públicas) dos seus cidadãos (Jaramillo, 2006).

Tratando-se de fenômeno recorrente, ainda que aparentem ser ocasionais ou efêmeros, este texto parte da premissa de que é impossÃÂvel eliminar os conflitos sociais. Também não é desejável eliminá-los, uma vez que eles são fortes motores para a criação e a consolidação da cidadania (Bobbio, 2004). Ao longo da história, os protestos, manifestações, eventos, marchas, reuniões, lutas, em suas várias designações, provocaram importantes transformações, e forçaram a conquista de direitos civis, polÃÂticos, econômicos, sociais e culturais; derrubaram ditaduras e garantiram o voto universal; o fim da escravidão e do apartheid; enfim, um enorme conjunto de questões que tocam a humanidade. A cidadania é, pois, moldada pela contestação (Jaramillo, 2006). Esse aspecto criador e criatura da democracia não será objeto de discussão neste trabalho.

Além da interface entre protestos e Estado (Colombia Internacional, 2006), há uma rica literatura sociológica que debate as motivações que levam cada indivÃÂduo a se engajar em protestos sociais (Turner, 2000), e outro leito igualmente rico sobre os atores polÃÂticos que promovem os protestos, a sociologia dos movimentos sociais (Gohn, 2003). Nenhum desses temas, embora relevantes, receberá nossa atenção. Todavia, ressalve-se:

Os movimentos sociais organizados têm uma relativa permanência temporal e tendem, no mundo contemporâneo, a se estruturar sob a forma de redes de militância que operam como uma estratégia para a construção de significados polÃÂticos ou culturais em comum, tendo em vista a conquista e a mobilização de ativistas, a produção de ações de advocacia e de interferência nas polÃÂticas públicas, ou a produção de mudanças na cultura, na polÃÂtica ou no sistema social de forma mais abrangente (Scherer-Warren 2014, p.422). Os movimentos sociais promovem e participam de manifestações, mas não se reduzem a elas. Por outro lado, um cidadão que participa de uma manifestação não necessariamente pertence a um movimento organizado, ou cria uma nova forma organizativa. As manifestações não são a priori de esquerda ou de direita, e podem agregar indivÃÂduos de diferentes classes sociais, embora as classes mais altas tenham outros mecanismos de pressão direta sobre os governos, como o uso do lobby ou da corrupção (Jaramillo, 2006).

Feita essa breve digressão, retomamos o objetivo deste artigo, esclarecendo que não pretendemos discutir os movimentos sociais, os protestos sociais, ou mesmo as respostas governamentais que atualmente veem sendo dadas pelos governos a esses momentos de tensão. O que pretendemos é convencer os policy makers a repensar suas estratégias (ou a ausência delas, que se desdobra em improvisação) diante dos protestos, estimulando-os a construir polÃÂticas públicas para lidar com a questão de maneira não violenta. Para isso apontamos um conjunto de boas e más práticas identificadas em diferentes normativas internacionais.

Um Estado pode colocar limitações razoáveis às manifestações ou mesmo dispersar aquelas que se tornam violentas, respeitando os DDHH e usando a força apenas quando estritamente necessário. Ou seja, o Estado deve garantir e proteger o direito de reunião, adotando medidas administrativas e normativas, desenvolvendo planos e procedimentos que sirvam pré, durante e pós manifestações (por exemplo, reordenando o trânsito) de maneira a fortalecer a democracia e a cidadania. Em suma, tratar os protestos como objetos de polÃÂticas, e não de polÃÂcias (Penido Oliveira, 2019).

Embora as questões sejam universais, as polÃÂticas públicas devem ser pensadas segundo as realidades locais, portanto, os exemplos não são um receituário, e sim devem funcionar como parâmetros para a construção das polÃÂticas. Pensar a questão dos protestos sociais sob o parâmetro das polÃÂticas públicas é interessante, pois permite distinguir entre os discursos dos governos e a sua ação. Permite verificar como os vários atores polÃÂticos (formais e informais) se engajam na sua proposição, decisão, implementação, execução e avaliação, ou seja, como constroem polÃÂticas públicas (Souza, 2006).

Para debater este argumento, o artigo foi organizado em duas partes, além desta introdução e algumas considerações finais. Na primeira parte busca-se delimitar o direito de protesto como um direito humano fundamental, apontando a importância do ambiente internacional para se pensar os conflitos, numa correlação entre o local e o global. A segunda traz o compilado de bons e maus exemplos internacionais, oferecendo subsÃÂdios globais para que os legisladores e os executores das polÃÂticas públicas tomem melhores decisões locais. Os exemplos foram selecionados e organizados em variáveis escolhidas segundo os dilemas e tensões que impactam a realidade brasileira dos protestos sociais.

Por fim, esclarece-se que, ainda que um paÃÂs adote todas as boas medidas sugeridas no artigo, a questão de fundo dos protestos sociais não será resolvida. Pode ocorrer, por exemplo, uma discrepância entre os textos normativos e as práticas institucionais, algo explorado pela literatura que discute a autonomia decisória dos agentes de segurança.

Os policiais na linha de frente não se orientam primariamente pela lei e sim por um estoque de conhecimento informal que comporia a cultura organizacional da polÃÂcia. Esse estoque de conhecimento seria formado por teorias sobre a origem e a natureza dos criminosos, métodos próprios de investigação e por uma série de outros conhecimentos aprendidos informalmente e que contrastam fortemente com os valores e comportamentos formalmente prescritos pela organização. (Lopes; Ribeiro e Tordoro, 2016, p.329) Nesse sentido, adotar as medidas sugeridas não significa que a práxis das agências de fato mude. Para isso, seria necessária uma discussão de fundo sobre o significado dos direitos humanos para a área de segurança (Aguiar de Paula, 2011), sobre a democracia em geral (Marx, 2009) e no Brasil (Fernandes,1975), assim como sobre a permanente militarização do Estado brasileiro (Mathias, 2004).

Se para a maior parte dos setores polÃÂticos de esquerda não há muito que fazer no que concerne àviolência se não ocorrer uma mudança "estrutural" que afete radicalmente a distribuição da riqueza e da propriedade, para a direita a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT