“ordem” e “pureza” na sociedade do consumo: uma perspectiva de análise da tendênciaao (hiper)encarceramento

AutorMarcelo Marcante Flores
CargoAdvogado/RS Mestrando e especialista em Ciências Criminais
Páginas13-16

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I Considerações iniciais

O objetivo é traçar algumas linhas básicas para problematizar o lado obscuro da racionalidade instrumental que está presente na sociedade moderna e persiste na contemporaneidade. Em virtude da mudança de paradigma ocorrida nos modelos econômico e social, dentre várias outras perspectivas de análise, podese caracterizar a sociedade contemporânea – antes tida como de produtores – como a sociedade do consumo. No âmbito penalógico, esta passagem marca o declínio do ideal de reabilitação e a reinvenção da prisão, agora utilizada com a finalidade de neutralizar os “estranhos”, incluindo os consumidores falhos. A busca pela “ordem” e “pureza” está presente em ambos os paradigmas de sociedade, forjados sob a mesma forma de racionalidade instrumental, que se (re)legitima a partir de outros argumentos.

II A racionalidade (instrumental) moderna e a contemporaneidade: da sociedade de produtores à sociedade de consumidores

A racionalidade moderna formou sua estrutura de poder a partir da ideia do panóptico de Benthan, cujo dispositivo depende da organização das unidades espaciais e do controle do tempo. A nítida separação das noções espaciais funciona como uma espécie de laboratório de poder que, devido aos seus mecanismos de observação, ganham em eficácia. No seu “tipo ideal”, o panóptico não permitiria qualquer espaço privado “opaco”, sem supervisão ou não passível de supervisão1.

Tratase, na verdade, de uma “anatomia política”, uma “mecânica do poder”, que define o domínio sobre o corpo dos outros, trabalhados para operar segundo as técnicas, rapidez e eficácia que se determina. A sociedade disciplinar objetiva(va) fabricar corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”, aumentando suas forças (em termos econômicos de utilidade) e diminuindo essas mesmas forças (em termos políticos de obediências)2. Portanto, o espaço moderno tinha que ser rígido, sólido, permanente e inegociável. Concreto e aço seriam a sua carne, a malha de ferrovias e rodovias os seus vasos sanguíneos. O controle (delimitação) do espaço proporcionava o domínio do tempo, aspectos que consistiam na combinação moderna com significado bastante definido3.

O esquema panóptico foi projetado para se difundir no corpo social tendo por vocação uma função generalizada e como papel a amplificação. O poder organizase para tornar mais fortes as forças sociais – aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar. Consiste, desta maneira, num princípio geral de uma nova “anatomia política”, cujo objeto e fim são as relações com a disciplina4.

Com isso, as concepções de unidade e divisões sociais (ou territoriais) se tornam a chave de uma sociedade idealizada através da organização do espaço e orientada para a manutenção da ordem. Esta delimitação proporcionava aos administradores o domínio do tempo dos administrados, o que correspondia ao segredo do exercício de seu poder. A imobilização do subordinado no espaço negava-lhe o direito ao movimento e rotinizava o ritmo a que devia obedecer, o que consistia na principal estratégia do exercício do poder na modernidade5.

Todavia, os pressupostos que sustentaram o paradigma e a visão da sociedade moderna mostramse deficientes para lidar com as (novas) características contemporâneas. Com o advento da rede mundial de computadores e as novas tecnologias de informação, sobre esta concepção de espaço planejado se impôs um terceiro espaço cibernético6 do mundo humano. A separação das pessoas por obstáculos físicos ou distâncias temporais se reduz através da interface dos terminais de computadores e monitores de vídeo7.

Esta constante mutação denota uma mudança de paradigma, que surge com o esfacelamento das (modernas) concepções de tempo/espaço que eram os pilares da sociedade disciplinar. Esta ruptura intensifica o processo de globalização e introduz uma nova etapa histórica do desenvolvimento do capitalismo moderno8 e do sistema geopolítico mundial, caracterizado pela intensificação do mercado e dos intercâmbios capitalistas internacionais.

Para CASTELLS, a interdependência dos mercados financeiros e monetários evidencia que o grau de autonomia dos governos para a definição da política econômica foi drasticamente reduzido (sobretudo nos anos 90), tendendo a aumentar com a grande mobilidade do capital pelo globo. Consequentemente, os Estados-Nação9 estão a perder o controle sobre os componentes fundamentais de suas políticas econômicas10.

Não se trata de um processo singular, mas um conjunto complexo de processos que operam de maneira contraditória e antagônica. A globalização está “retirando” o poder ou influência de comunidades locais e nações para transferilo para a arena global. Com isso, as nações perdem parte do poder econômico que antes possuíam11. A capacidade instrumental do Estado- Nação está comprometida pela globalização das principais atividades econômicas, de comunicação e da própria criminalidade12 13

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Por isso, ao contrário do que possa parecer, o processo não gera “ordem global” (coesão social, uniformidade, unidade, estabilidade, harmonia), mas produz uma “desordem global” (contradições, riscos, tensão, complexidade, desordem, contingência, desintegração, desigualdade)14. Portanto, a globalização não afeta unicamente os grandes sistemas como a ordem financeira mundial, não diz respeito apenas ao que está afastado e muito distante do indivíduo, mas sim exerce influência sobre aspectos íntimos e pessoais de nossa vida15.

Percebese que esse novo modelo econômico depende da “fabricação” de um novo homem. O neoliberalismo moldou a sociedade do consumo e apostou na desinstitucionalização, investindo no objeto e no homem quando de sua adaptação à mercadoria. A nova economia psíquica é estruturada na ideologia da economia de mercado, que não precisa de voz, não precisa estar referida a um autor, nem espera por revelação, já que o campo lógico em que funciona é aquele em que “impossível não há”. Em razão da necessidade do consumo, a hegemonia da aparência define o critério fundamental do ser e da existência, o sujeito vale pelo que “parece ser”, mediante as imagens produzidas para se apresentar na cena social16>.

Então, para “ser” é preciso “parecer ser”; e para “parecer ser” é preciso “ter”/“comprar”. Os objetivos passam a ser os mais imediatos e efêmeros decorrentes da vontade de consumir. A dificuldade de traçar um objetivo duradouro, diante de tanta “liberdade”, de tanto risco e incerteza torna o “ir às compras” a melhor maneira de satisfazer rapidamente nossos objetivos. A capacidade de consumir implica a própria existência do homem/ cidadão17, tornandose o objetivo mais fácil a ser fixado/ alcançado.

Para conseguir ter sucesso dentro da ‘mata densa, escura, espalhada e “desregulamentada” da competitividade global’, os bens, serviços e sinais devem seduzir e despertar a atração e o desejo dos possíveis consumidores, afastando os competidores. “Feito isto, é preciso abrir espaço rapidamente para outros objetos de desejo”, para não cessar o aumento dos lucros (“crescimento econômico”). A indústria atual funciona e depende cada vez mais da produção de atrações e tentações ao consumidor18.

Quando se fala em sociedade de consumo, para BAUMAN, temos em mente que a nossa é uma “sociedade de consumo” no sentido...

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