Qual o gênero no STF? Uma análise do discurso de gênero presente nos votos das(os) ministras(os) do Supremo Tribunal Federal/What is the gender on STF? An analysis of the gender discourse found in the decisions of the Supreme Court Judges.

AutorGomes, Camilla de Magalhães

Introdução

Do que falamos quando falamos de gênero? Quais os diversos sentidos do gênero? Quais as bases teóricas das discussões no tema? O que as palavras que escolhemos para falar de gênero podem revelar? Há, sem dúvida, uma longa trilha teórica a respeito do gênero e seus muitos conceitos e teorias. Muitas dessas linhas se relacionam ou pensam a linguagem e os discursos a seu respeito. Não poderia ser diferente: falar de gênero, desde suas primeiras menções na teoria e no movimento feminista, tem por um dos propósitos afastar o recurso à natureza para pensar o ser homem e ser mulher e os papeis, estereótipos, imagens e estrutura de poder presentes nessas definições, levando o tema para o campo das ciências sociais e para a discussão sobre as formações culturais. "Gênero é cultura", vamos ver se repetir em vários discursos, como é o caso do discurso da jurisprudência da Suprema Corte. Afirmar isso, contudo, não é suficiente, especialmente se o discurso, de algum modo, ainda se sustenta em reivindicações de natureza, em referências biológicas, em recursos à essência do ser.

É por isso que apresento a proposta que aqui se desenvolve: analisar, sob a teoria da performatividade, o discurso de gênero que circula no STF. A partir de um levantamento dos acórdãos que mencionam a palavra "gênero", 30 decisões foram encontradas usando o termo no contexto de que tratamos aqui. (1) As decisões serão examinadas em um único ponto: de que gênero falam as/os Ministras/os? Com a realização da pesquisa na base de jurisprudência da Corte, muitas decisões apareceram usando o termo dos mais diversos modos (ex: "gêneros alimentícios"). Com esse primeiro filtro, foram encontrados 30 acórdãos que mencionam a palavra gênero no sentido empregado para falar de pessoas--homem/mulher, masculino/feminino. Pela limitação do tempo e espaço e pela busca de usos presentes no discurso das decisões em colegiado, foram buscadas apenas decisões em acórdãos, sejam de ações ou recursos em Plenário, sejam das Turmas. Em se tratando de pesquisa na base de jurisprudência, portanto, todas elas constituem ações e recursos com decisão final--os acórdãos aqui mencionados - e foram analisadas em seu "inteiro teor": na linguagem jurídica, o inteiro teor dos acórdãos corresponde à Ementa--que representa o resultado final uma vez proferidos todos os votos--seguida do conteúdo de cada um dos votos de cada Ministro. Os temas jurídicos dos processos e recursos encontrados mencionando a questão de gênero são bem variados e incluem questões mais comumente conectadas a ela--direitos das mulheres, gênero e sexualidade, direitos sexuais e reprodutivos--até outras que tratam de questões como cotas raciais ou cálculo do fator previdenciário, ou ainda a ação que discutiu o uso de célulastronco. Na maior parte dessas últimas, contudo, o termo é mencionado de modo mais objetivo ou mesmo em uma citação de texto legal ou convencional, sem que possam ser encontrados nos votos menções mais aprofundadas a respeito do gênero como um conceito ou categoria interpretativa e, assim, ao final, 24 decisões compuseram o corpus da análise.

As decisões examinadas neste trabalho são, assim, as proferidas nas ações e recursos seguintes: Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC no 19, que tem por objeto a constitucionalidade da Lei 11340/06--Lei Maria da Penha; Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC no 41, cujo objeto é a discussão da constitucionalidade de reserva de vagas--cotas raciais - em concursos públicos; a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI no 3510, debatendo a constitucionalidade da Lei de Biossegurança; Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI no 4275, com objeto na alteração do registro civil de pessoas trans*; a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI no 4424, também tratando da Lei Maria da Penha e a constitucionalidade de alguns dos seus artigos; a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI no 4439, que discute o ensino religioso nas escolas; a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI no 5938, com o tema da proteção da mulher gestante e mãe na Reforma Trabalhista; a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental--ADPF no 54 que tratou da antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos; Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental no 132, a respeito da denominada união homoafetiva; o AG.REG. no Recurso Extraordinario com Agravo 985.831 sobre cálculo de fator previdenciário; o Habeas Corpus - HC no 124306, sobre prisão preventiva de médicos que realizaram aborto em paciente; o Habeas Corpus - HC no 134670, a respeito da competência para julgar caso de crime de furto como violência doméstica patrimonial; Habeas Corpus - HC no 137888, debatendo aplicação de pena restritiva de direitos em sede da Lei Maria da Penha; Embargo de Declaração no Habeas Corpus no 170423, a respeito de pessoas transexuais menores de idade em medida de internação; Habeas Corpus - HC no 106212; discutindo a constitucionalidade da Lei Maria da Penha; Habeas Corpus - HC no 143641, que constitui habeas corpus coletivo pela concessão de prisão domiciliar de mulheres mães e gestantes presas cautelarmente; Inquérito--Inq no 3932, investiga ofensas sexistas proferidas por parlamentar contra outra parlamentar mulher; Mandado de Segurança - MS no 28816, cujo objeto é a responsabilidade de membro da magistratura por manutenção de pessoas de ambos os gêneros em um mesmo estabelecimento prisional; Agravo Regimental no Recurso Extraordinario no 432.484, que trata de aposentadoria de magistradas e magistrados e distinção de gênero; Agravo Regimental no Recurso Extraordinario no 477554, com objeto na união civil entre pessoas do mesmo sexo; o Recurso Extraordinário no 528684, tratando de "Edital que prevê a possibilidade de participação apenas de concorrentes do sexo masculino"; o Recurso Extraordinário - RE no 658312, em que a Corte examina a "Constitucionalidade do intervalo de 15 minutos para mulheres trabalhadoras antes da jornada extraordinaria" e, por fim, o Recurso Extraordinário--RE no 670422/, tendo por objeto o direito de pessoas trans* alterarem nome e gênero no registro civil e a Ação Direta De Inconstitucionalidade Por Omissão 26--ADO no 26, que discute a criminalização da LGBTfobia.

Lidas as ementas dos acórdãos para realizar essa primeira filtragem, as decisões foram submetidas a uso de software para pesquisa lexical, identificando os trechos em que a palavra objeto de pesquisa aparecia. Separados, lidos, compilados e examinados os resultados, alguns usos foram se destacando em seus contextos e separados sob categorias para que fossem submetidos à análise qualitativa. É importante lembrar aqui que estou buscando o sentido do gênero encontrado no discurso dos Ministros, assim, alguns foram excluídos, como por exemplo trechos em que "gênero" aparece em expressões como desigualdade de gênero, igualdade de gênero e que, assim, não estavam realizando uma tentativa de conceituação ou descrição do que é o gênero, mas uma afirmativa de que, por exemplo, a Lei 11340 "[R]econhece, pois, a desigualdade de gênero"(BRASIL, 2012b) ou que a "luta pela igualdade de gênero, marca indelével da Constituição da República atualmente em vigor no Brasil, é fruto de um longo processo histórico de reconhecimento de direitos às mulheres"(BRASIL, 2019a). Algumas dessas ocorrências, contudo, foram incluídas em notas de rodapé para que a pessoa leitora possa identificar esse modo de emprego do termo. Muitos dos trechos incluíam citações a documentos legais internacionais ou nacionais ou citações a obras--jurídicas ou não--como fontes. Estes trechos também foram excluídos.

Nessa compilação encontrei, então, três modos de utilização do termo em trechos que buscam dizer o que ele é e separei conforme a seguinte categorização: a) na primeira, passagens que ao definir ou falar de gênero, relacionam ou comparam o termo com as definições de sexo ou ainda a confundem com essa ultima expressão; b) na segunda, identifiquei um dos usos mais comuns, o uso de gênero para falar de masculino e feminino. Neste ponto fiz uma subdivisão: trechos que falam de gênero masculino/gênero feminino como uma abstração, uma ideia, um ideal e trechos que usam a mesma expressão para falar de pessoas de modo mais específico, concreto, como sinônimos de homens e mulheres. Por último, c) os trechos que falam de gênero dentro da expressão identidade de gênero.

Na construção deste texto, para dar início, trabalharei sua base teórica: o gênero como performatividade e explicarei, neste ponto, como essa base serviu a construir as categorias de análise acima apontadas. A continuar, apresento os achados de pesquisa separados nas categorizações acima, começando, contudo, pela pesquisa dos termos feminismo e feminista, talvez para já começar dizendo sobre que gênero a Corte não fala ou pouco fala. Após, falo dos resultados pela busca do termo gênero. Ao final, teoria e achados de pesquisa são reunidos para uma análise da produção normativa do gênero na Corte.

Por último, quero ressaltar que escolhi apresentar os trechos apontando no voto de qual Ministra/o ele aparece e em que ação. Ainda assim, foram agrupados conforme as categorias acima, pensando, como aponta Eder Fernandes Monica, na continuidade discursiva para, com isso, tentar encontrar "mesmo diante da polifonia dos variados votos" as linhas de similitude e continuidade ali presentes e que fazem ressoar a matriz colonial heteronormativa de gênero sob a qual vivemos. Como diz o autor:

Assim, não importam tanto os sentidos particulares dos votos dos Ministros, mas sim as similitudes e interconexões que produzem o sentido de uniformidade das interpretações judiciais. A linguagem é algo que "está no mundo", que está para além da descrição e compreensão que fazemos de nós mesmos e de nossas intencionalidades. Por isso, não é tão suficiente e importante conhecermos as intencionalidades dos atores envolvidos nos discursos, mas o modo como esse discurso é vivenciado no...

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