Quando o Estado se divide: moral e política no caso dos derivados da Cannabis

AutorVeronica Paulino da Cruz, Marcelo James Vasconcelos Coutinho
CargoDoutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)/Doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Páginas1-19
1
R. Dir. sanit., São Paulo, v.23, n.1, e0007, 2023
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.rdisan.2023.185693
Artigo Original
http://www.revistas.usp.br/rdisan
RESUMO
Este artigo analisou as relações políticas
estabelecidas entre os poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário ao longo do processo
decisório de regulamentação, no Brasil, do uso
de derivados da Cannabis para fins de tratamento
médico. Tratou-se de um estudo exploratório, de
abordagem qualitativa, desenvolvido no período
de 2014 a 2020 por meio de análise documental
(materiais jornalís ticos, discursos e declarações
feitas em audiências públicas) e revisão de
literatura. Como resultado, evidenciaram-se
as discordâncias internas e as diferentes
características e fundamentos que envolvem a
chamada arena regulatória. O estudo mostrou
que o Poder Executivo fundamenta sua posição
com base em argumentaçã o técnica e científica;
o Legislativo, sob o filtro moral e empresarial,
apresenta argumentação mais estritamente
moralista, baseada e m perspectivas de “certo” e
“errado”; e o Judiciário, também com perspec tiva
ideológica, expôs um padrão legal-formal de
argumentos, revelando-se o mais sensível aos
pedidos de familiares e as sociações de usuários
(com base no direito individual). Fundamentando-
se na Teoria da Moralidade Política, o estudo
concluiu que as instituições do Estado brasileiro
articulam-se em tor no de perspectiva s construídas
por valores morais que impactam diretamente as
políticas públicas de saúde.
Palavras-ch ave: Cannabis; Derivados da
Cannabis; Poder Público; Políticas Públicas;
Saúde Pública.
ABSTRACT
This article analy zed the political relations
between the E xecutive, Legislative and
Judicial branches, established throughout the
decision-making process for the regulation,
in Brazil, of the use of Cannabis derivatives
for medical treatment purposes. This is an
exploratory study, with a qualitative approach,
developed in the per iod 2014-2019, carried
out through documentary analysis (media
materials, speeches and statements made in
public hearings). and bibliographic review.
As a result, internal disagreements and the
different characteristics and foundations
that surrounded the regulatory arena were
evidenced: the Executive branch presents
technical and scientific argumentation; the
Legislative one, under the moral and business
filter, has a moralistic argumentation; and
the Judiciary one, also with an ideological
perspect ive, exposes a legal-formal standar d,
being the most sensitive to the request s of
family members and associations (based
on individual law). Based on the Theory of
Political Morality, it was concluded that the
institutions of the Brazilian State are aimed
at moral values that direc tly impact public
health policies.
Keywords: Cannabis; Cannab is Derivatives;
Public Power; Public Polices; Public Health.
Verônica Paulino da Cruz1
https://orcid.org/0000-0003-0138-7457
Marcelo James Vasconcelos Coutinho2
https://orcid.org/0000-0002-7580-9045
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Escola de Serviço Social. Departamento de Política Social. Rio de Janeiro/
RJ, Brasil.
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEEP-DH).
Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
Correspondência:
Verônica Paulino da Cruz
veronicacruzvc@ufrj.br
Recebido: 10/06 /20 21
Revisado: 09/05/2022
Aprovado: 11 /07/ 20 22
Conito de interesses:
Os autores declaram não haver
conflito de interesses.
Contribuição dos autores:
Todos autores contribuíram
igualmente para o
desenvolvimento do artigo.
Financiamento:
Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) – Projeto
“Práticas de Vigilância Sanitária
no Brasil – interface regimental
da Anvisa com os demais órgãos
do Poder Executivo que atuam
no setor”.
Agradecimentos:
Professor Luis Mota da
Associação Portuguesa de Ciência
Política (APCP) pelos primeiros
comentários feitos ao artigo.
Copyright: Esta licença
permite compartilhar — copiar
e redistribuir o material em
qualquer suporte ou formato;
adaptar — remixar, transformar,
e criar a partir do material para
qualquer fim, mesmo
que comercial.
Quando o Estado se divide:
moral e política no caso dos derivados
da Cannabis
When the State is Divided: Moral and Politics in the Case of
Cannabis Derivatives
2
Quando o Estado se divide: moral e política no caso dos derivados da Cannabis Cruz V. P., Coutinho M. J. V.
R. Dir. sanit., São Paulo, v.23, n.1, e0007, 2023
Introdução
Este artigo analisou como os potenciais efeitos terapêuticos de substâncias derivadas
da Cannabis são confrontados com os aspectos morais e de costumes na sociedade
brasileira. Em que pese o choque de valores semelhantes, alguns países refizeram suas
respectivas regulamentações nessa área em face às novas descobertas científicas e
às mudanças na sociedade. No Brasil, o debate público sobre o tema se desenvolve
há alguns anos e ganhou terreno à medida que cresceram as pressões por uma
solução final.
Ao longo dos sete anos pesquisados (2014-2020), não se observou um posicionamento
claro dos membros do Congresso brasileiro sobre o assunto. notaram-se apenas
decisões pontuais, ora por parte da justiça isoladamente, caso a caso, acionada
pelas famílias de pessoas enfermas, ora por parte da reticência do órgão regulador
– a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), instituição do Poder Executivo
que mais assumiu protagonismo diante das crescentes pressões oriundas de grupos
sociais no país, que pouco a pouco constituíram dentro do Estado uma arena decisória
reguladora bastante dividida.
A pesquisa cobriu praticamente todo o período mais importante em que a discussão
sobre esse tema se desenrolou no Brasil: de 2014 a 2020. Apresentam-se, a seguir,
os resultados reunidos a partir do exame de material jornalístico e de documentos
oficiais, todos disponibilizados na imprensa escrita. Nesse sentido, observou-se que,
ao longo do período analisado, o Estado brasileiro teve dificuldade de se posicionar
de maneira integrada e coesa sobre o assunto, havendo nos poderes da República
uma profunda divisão de opiniões contrárias e a favor. É importante salientar que
foram analisadas as narrativas dos principais atores, incluindo os argumentos morais
ou técnicos levantados por cada um deles. Os autores não buscaram corroborar nem
refutar nenhum argumento técnico ou moral apresentado por quaisquer dos atores
públicos envolvidos no processo decisório em questão, mas sim apresentar os argumentos
como esses atores os expõem.
A pesquisa revelou que o Estado brasileiro está dividido quanto à permissão do
uso medicinal da Cannabis. Enquanto o Executivo, representado pela Anvisa, tem
uma posição unificada e contrária em suas resoluções, com apenas um incremental
progresso verificado nessa posição, o Judiciário já emitiu juízos favoráveis, embora
seu consenso seja limitado dentro dos tribunais. No Congresso Nacional, havia
no período um dissenso moderado na Câmara dos Deputados e no Senado, com
muitos debates inconclusivos, sendo que a maioria dos parlamentares se manifestava
desfavorável às medidas de liberalização dos derivados da Cannabis. De acordo com
tais posicionamentos, ao longo do processo decisório, acabam-se por identificar e
explicar as razões e motivações do comportamento de cada um dos entes federados
mencionados em relação a esses medicamentos.
Não só as posições e os graus de discordância interna variam, como também são
diferentes as características das arenas regulatórias e os fundamentos utilizados em
cada um dos poderes para as tomadas de decisões. O Executivo apresenta uma arena
burocrática-insulada, isto é, administrativa e distante das mobilizações dos grupos sociais
tanto contrários quanto a favor da regulamentação do uso de medicamentos derivados da
Cannabis. A argumentação da Anvisa, observada a partir de suas declarações públicas,
é basicamente de ordem técnica e científica, valendo-se de estudos especializados,
próprios e internacionais, que, para essa agência, não atenderiam a todos os requisitos
e testes em humanos requeridos para a aprovação de medicamentos.
Por outro lado, o Legislativo e o Judiciário delineiam aspectos mais ideológicos – ou
movidos por valores – em suas posições, com o Congresso tendo uma inclinação
conservadora e sendo mais permeável às pressões oriundas da sociedade, sobretudo
de grupos religiosos, e os tribunais tendo maior liberalismo, comportando-se de

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