O quotidiano do direito internacional ao longo dos anos

Páginas279-296
Capítulo IX
O QUOTIDIANO DO
DIREITO INTERNACIONAL
AO LONGO DOS ANOS
Sumário: I. O Primado do Direito nos Planos Nacional e Internacional. 1.
A Condenação dos Crimes de Estado. 2. O Fim das “Leis” de Auto-Anistia.
II. O Primado do Direito sobre a Força. 1. A Capa Tênue da Civilização. 2.
A Guerra como Crime. 3. A Ilegalidade das Armas Nucleares. 4. O Direito
e os Limites da Força. 5. A Proibição Absoluta da Tortura.
I. O PRIMADO DO DIREITO NOS PLANOS
NACIONAL E INTERNACIONAL.
1. A Condenação dos Crimes de Estado1.
Na última meia-década, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
tem se pronunciado sobre um novo ciclo de casos, congurando, no meu
entender, verdadeiros crimes de Estado, planicados nos mais altos escalões e
executados em meio a verdadeiras políticas estatais de extermínio sistemático
de seres humanos. Rero-me, e.g., às Sentenças da Corte nos casos dos Mas-
sacres de Barrios Altos (de 14.03.2001), de Plan de Sánchez (de 29.04.2004),
dos 19 Comerciantes (de 05.07.2004), de Mapiripán (de 17.09.2005), da Co-
munidade Moiwana (de 15.06.2005), de Pueblo Bello (31.01.2006), e de Itu-
ango (de 01.07.2006), assim como nos casos de assassinatos planicados no
mais alto nível do poder estatal e executados por ordem deste (como o de
Myrna Mack Chang, Sentença de 25.11.2003). Nos respectivos procedimen-
tos contenciosos perante a Corte Interamericana, quase todos estes casos de
massacres contaram, signicativamente, com o reconhecimento de respon-
sabilidade internacional por parte dos próprios Estados demandados pela
1 In: Suplemento “Direito e Justiça” do Correio Brasiliense, Brasília, 30.10.2006, p. 1 (1ª. ed.);
e in: Revista Jurídica Consulex, vol. X, n. 237, Brasília, 30.11.2006, pp. 38-40 (2ª. ed.); e in:
Suplemento “Direito e Justiça” do Estado de Minas, Belo Horizonte, 11.12.2006, p. 9 (3ª.
ed.).
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ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE
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ocorrência dos crimes, no intuito de determinação dos ilícitos do passado
para evitar sua repetição.
Este fenômeno, da maior relevância histórica, não encontra paralelos em
outros tribunais internacionais contemporâneos. E, como assinalei em alguns
de meus Votos Fundamentados nos casos supracitados, deveria seguramente
levar a uma reconsideração, pela Comissão de Direito Internacional (CDI) das
Nações Unidas, da posição evasiva e inconvincente que assumiu em 2001, tor-
nada hoje insustentável, ao engavetar a noção de crimes de Estado para obter a
aprovação de seus Artigos sobre a Responsabilidade Internacional do Estado.
Quer a CDI os reconheça ou não, os crimes de Estado sim, existem, tal como o
têm confessado expressamente alguns dos próprios Estados demandados pe-
rante a Corte Interamericana.
Ademais dos casos supracitados, em seu último período ordinário de ses-
sões, encerrado há um mês em sua sede em San José da Costa Rica, a Corte
Interamericana emitiu duas novas Sentenças, da maior transcendência histó-
ria, em que reitera sua asserção da responsabilidade internacional agravada do
Estado: rero-me às Sentenças atinentes ao regime Pinochet (de 27.09.2006,
sobre o caso Almonacid e Outros) e ao regime Stroessner (de 22.09.2006, sobre
o caso Goiburú e Outros). Os procedimentos respectivos contaram novamen-
te com a alentadora cooperação processual dos Estados demandados, empe-
nhados na determinação dos fatos passados para a realização da justiça; no
segundo caso (Goiburú e Outros), o Estado demandado procedeu inclusive ao
reconhecimento de sua responsabilidade internacional, em mostra de maturi-
dade, a exemplo do ocorrido em casos anteriormente mencionados. Em ambas
Sentenças, em meus extensos Votos Fundamentados, deixei registro de mi-
nhas reexões pessoais sobre os crimes de Estado, tendo em mente sobretudo
os horrores da sinistra Operação Condor.
Em meu Voto Fundamentado no caso Almonacid e Outros (cujas audi-
ências públicas se celebraram na sessão externa da Corte Interamericana re-
alizada em Brasília, em 29.03.2006), busquei demonstrar a falta de validade
jurídica das chamadas autoanistias (a exemplo do aviltante Decreto-Lei n.
2191, de 18.04.1978, do regime Pinochet), incompatíveis com a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, ao gerar a obstrução e denegação de
justiça, e a conseqüente impunidade dos responsáveis pelas atrocidades. In-
sisti na necessidade de ampliação do conteúdo material das proibições do
jus cogens (de modo a assegurar o acesso à justiça nos planos tanto nacional
como internacional), e situei, enm, a conceituação dos crimes contra a hu-
manidade na conuência entre o Direito Internacional dos Direitos Huma-
nos e o Direito Penal Internacional.
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