(Re)estruturação da magistratura no Brasil

AutorMaurício Corrêa de Moura Rezende
Páginas185-340
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CAPÍTULO 2
(RE)ESTRUTURAÇÃO DA MAGISTRATURA
NO BRASIL
A grande tensão do Poder Judiciário contemporâneo se dá em como
fazer para que a aplicação das leis, da Constituição, de direitos e princípios
que muitas vezes são conflitivos seja dada de maneira coerente. Contudo,
nas palavras de Clève, “esse trabalho de adequação – ‘filtragem’ (negativa
de aplicação de determinados dispositivos e interpretação de outros
conforme a Constituição) – não é fácil. Nem todos estão preparados para
leva-lo adiante”.355 Ademais, se há um fator político-ideológico inexorável
em qualquer decisão judicial, como fazer para que os magistrados (muitos
deles formados antes de 1988) decidam de modo ordenado conforme os
ditames da Lei Maior? Isto é, que não veiculem, em suas decisões, ideologias
contrárias aos objetivos fundamentais da República.356 Como é possível
garantir a legitimidade democrática de um agente que ao mesmo tempo
deve ser um aperfeiçoado técnico jurídico e também um agente político?357
355 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Para uma dogmática constitucional emancipatória. Belo
Horizonte: Fórum, 2012, p. 46.
356 FARIA, José Eduardo. “Direito e Justiça no século XXI: a crise da Justiça no Brasil”.
Colóquio Internacional – Direito e Justiça no Século XXI, pp. 1-39, 2003. Disponível em
www.ces.uc.pt/direitoXXI/comunic/JoseEduarFaria.pdf, p. 8.
357 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 28.
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MAURÍCIO CORRÊA DE MOURA REZENDE
Por que o Judiciário, no tocante aos seus magistrados, é o que é, e não
outra coisa?
Segundo Zaffaroni, “en una sociedad nadie nace por generación espontánea:
ni los jueces, ni los policías, ni – por cierto – los políticos. Si cada uno de ellos
tiende a ser como es, es porque así tiende a moldearlo la institución en que se
enrolan”.358 Por conseguinte, qualquer instituição é uma estrutura de poder
que tende a se reproduzir, isto é, que cria seus agentes, os formam e modela
suas atitudes e imagem. Essas estruturas, assim, tendem a formar um perfil
homogêneo de indivíduos, que também passam a dar continuidade as
estruturas que lhe formatam. E essa formatação é apenas o intermédio da
derradeira resposta judicial aos casos concretos, porque “o processo social
de produção dos juízes lhes incute uma visão especifica do Direito e, por
conseguinte, (…) essa visão afeta a sua atividade judicante”,359 donde,
mexer nas estruturas importa ressignificar as possiblidades de resposta
judicial oferecidas às questões judicializadas, sobretudo às questões difíceis.
É importante destacar que, apesar de serem os modelos estruturantes,
produtores e reprodutores um certo perfil de magistrado, no entanto, cada
juiz não está divorciado de sua realidade social. Assim, mesmo no modelo
empírico-primitivo, é claro que um juiz nomeado politicamente pode ser
um bom juiz, que judique democraticamente. Mas isso ocorrerá pelo
acaso, e não graças à estrutura.360
Pensar a efetiva democratização do Poder Judiciário no Brasil,
dessa maneira, passa pela estruturação de mecanismos institucionais que
efetivem de modo coerente o horizonte democrático de magistratura
358 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “Dimensión Política de un Poder Judicial
Democrático”. Cuadernos de Derecho Penal, pp. 15-53, 1992. Disponível em http://
new.pensamientopenal.com.ar/sites/default/files/2013/09/51zaffaroni.pdf. Acesso em
19.09.2014, pp. 35/36.
359 PERISSINOTTO, Renato Monseff; ROSA, Paulo Vinícios Accioly Calderari da;
PALADINO, Andrea. “Por uma sociologia dos juízes: comentários sobre a bibliografia
e sugestões de pesquisa”. In: ALMEIDA, José Maurício Pinto de; LEARDINI, Márcia
(coord.). Recrutamento e formação de magistrados no Brasil. Curitiba: Juruá, 2010, p. 165.
360 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Estructuras judiciales. Buenos Aires: Ediar, 1994.
Disponível em http://www.pensamientopenal.com.ar/articulos/estructuras-judiciales.
Acesso em 24.10.2014, pp. 133/134.
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CAPÍTULO 2 - (RE)ESTRUTURAÇÃO DA MAGISTRATURA NO BRASIL
delineado pela Constituição. Essa reflexão não se esgota no instituído,
mas sim também na reflexão a respeito do que pode ser feito. Reflexão
essa que deve ser feita sem alarmismos que possam levar a passos
descuidados, como a noção de “crise do Judiciário” que se arraigou
muito no início do século XX e que ainda hoje é ecoada. Essa noção,
que muito contribuiu para que fossem tomadas medidas apressadas,
imediatistas e sem grande reflexão a respeito. Nesse sentido, observe-se
que o longo período de ditaduras dos países da América Latina impediu
que o modelo judicial demonstrasse as suas falhas operacionais. Assim,
a ilusão de que a estrutura judicial era idônea em muitos países ruiu
subitamente justamente quando, depois de muitas décadas, voltou a
funcionar de maneira constitucional e independente, fazendo aparecer
as agruras da insuficiência do modelo e levando à noção de “crise
judicial”, que, em verdade, apenas aumenta a distância entre as funções
manifestas e latentes do Poder Judiciário.361
Por isso mesmo, deve-se pontuar desde logo, como faz José Renato
Nalini, que “a Reforma do Judiciário resultante da Emenda Constitucional
n. 45/2004 não foi uma profunda reforma estrutural da Justiça Brasileira.
Não atendeu a todas as expectativas. Desalentou aqueles que nutriam
enorme esperança de que a Justiça seria completamente outra a partir
de sua promulgação”.362 Aliás, Reforma que alguns não hesitam em
chamar de “mudança para pior”.363 Não se trata, assim, de voltar-se
apenas os olhos para o passado e analisar as instituições relativas à
Reforma, como se encerrassem em si a reestruturação do Poder
Judiciário. Pelo contrário, diante da realidade, supramencionada, de que
a magistratura pouco mudou em mais de trinta anos, e ainda se estrutura
sob uma perspectiva legalista, técnico-burocrática, sufocada e incapaz
de concretizar o projeto constitucional.364 Assim, o rumo pela
361 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Estructuras judiciales. Buenos Aires: Ediar, 1994.
Disponível em http://www.pensamientopenal.com.ar/articulos/estructuras-judiciales.
Acesso em 24.10.2014, p. 6.
362 NALINI, José Renato. “A formação do juiz após a Emenda à Constituição n. 45/04”.
Revista da Escola Nacional da Magistratura, vol. 1, n. 1, pp. 17-24, 2006, p. 17.
363 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 64.
364 NALINI, José Renato. A rebelião da toga. 2ª ed. Campinas: Millenium, 2008, p. 49.

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