Recuperação judicial - sociedades anónimas - debèntures - assembleia geral de credores - liberdade de associação - boa-fé objetiva - abuso de direito - cram down - par condicio creditorum

AutorPaulo Fernando Campos Salles de Toledo
Páginas263-281

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1. Consulta

O Escritório J. M. e W. M. Advogados Associados, em nome de sua constituinte Fundação P, honra-me com a seguinte Consulta:

"A Fundação P é credora da E S/A Indústria e Comércio no valor de aproximadamente R$ 78 milhões, representado por debêntures.

"Em abril de 2003, a E impetrou concordata preventiva perante o MM. Juízo da 3â Vara Cível da Comarca de Salto -Estado de São Paulo, sem, no entanto, incluir o crédito da P dentre os atingidos pelos efeitos da concordata. Contudo, movida a competente habilitação de crédito pelo agente fiduciário dos debenturistas, foi o crédito da P admitido ao quadro geral dé credores.

"Antes, porém, que fosse obrigada a efetuar o depósito judicial do crédito da P, a E convolou sua concordata preventiva em ação de recuperação judicial e obteve o deferimento de,seu processamento, interrompendo o procedimento concordatário e iniciando o previsto pela nova Lei n. 11.101/ 2005.

"Nos autos da recuperação judicial, a apresentou plano de recuperação que propunha o pagamento dos créditos representados por debêntures em dinheiro, ou mediante a conversão das debêntures em açõés da Devedora, a critério exclusivo do credor. Um grupo coeso de instituições financeiras credoras apresentou objeçãó a determinados aspectos do plano de recuperação proposto pela, e, em virtude deste fato, foi convocada a assembleia geral de credores para deliberar sobre o plano.

"Na assembleia geral, após a suspensão dos trabalhos para o exame das obje-ções pela, a Devedora manifestou-se favoravelmente às modificações propostas pelas instituições financeiras desde que outras alterações, jamais discutidas anterior-

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mente, fossem também aprovadas pelos credores. Ocorre que a principal destas novas alterações ao plano de recuperação consistia justamente em mudança na forma de pagamento dos credores debenturistas. De acordo com o novo plano apresentado pela E durante a assembleia geral, o crédito representado por debêntures deixaria de ser pago em dinheiro ou em ações, a critério do credor, para passar a ser pago exclusivamente pela sua conversão em ações da Devedora. Os debenturistas, assim, passariam a ser os únicos credores da E obrigados a se tornar acionistas da Companhia, enquanto todos os demais estariam a receber seus créditos em dinheiro ou bens imóveis.

"Unindo-se as instituições financeiras e a E em torno desta até então inédita proposta, acabou o plano de recuperação por ser aprovado pela assembleia geral de credores. Ressalte-se, neste passo, que as instituições financeiras detinham a maioria dos créditos das classes II e III da assembleia geral, de modo que o voto contrário da P não foi suficiente para impedir a aprovação do plano. Significa isto dizer que o plano aprovado previa tratamento diferenciado a credores de uma mesma classe e sua aprovação decorreu exclusivamente do voto dos credores por ele melhor aquinhoados em seus interesses e contrariamente ao voto do único credor a quem foi imposto o recebimento integral de seu crédito em ações da Devedora.

"Contra a decisão que homologou o plano e concedeu a recuperação judicial, a P interpôs agravo de instrumento, através do qual obteve liminar de suspensão dos efeitos da decisão concessiva da recuperação judicial. O agravo continua pendente de julgamento.

"Assim, com o objetivo de instruir o agravo de instrumento e a ação de recuperação judicial, submetemos a V.Sa. as seguintes questões:

"1. O voto proferido pelo credor em assembleia geral é totalmente livre ou deve ser proferido de modo a cumprir com os objetivos da Lei n. 11.101/2005? O voto que contrariar os objetivos da Lei pode ser tido por abusivo? O plano aprovado em assembleia geral pode deixar de ser homologado pelo juízo da recuperação judicial se aprovado em abuso do direito pelos credores votantes?

"2. Houve abuso do direito de voto na assembleia geral da E, através da qual a maioria dos credores aprovou plano que confere tratamento desigual e desfavorecido à?

"3. É lícito conferir aos credores debenturistas um tratamento desfavorecido em relação aos demais credores da classe III sem qualquer justificativa para isto? É lícito dividir os credores das três classes previstas na Lei em subclasses, conferindo-lhes tratamento diferenciado e permitindo que os credores incluídos em determinada subclasse favorecida pelo Plano, titulares da maioria dos créditos da classe III, decidam pela aprovação do Plano, contrariamente ao voto proferido pela maioria dos credores da subclasse desfavorecida?

"4. É lícito sacrificar alguns dos credores para favorecer a outros, sob o argumento de que o credor prejudicado não apresentara objeção ou propusera modificações ao Plano originalmente apresentado pela devedora?

"5. Há outros pontos relevantes a serem destacados?"

2. A exposição dos fatos

A E S/A Indústria e Comércio (E) emitiu, no dia 1° de maio de 1997, debêntures subordinadas conversíveis em ações, com vencimento fixado para 1- de maio de 2007. A conversão poderia dar-se "a qualquer momento a partir da data da subscrição, à opção dos debenturistas" (cf. cláusula 12 da escritura de emissão).

A quinta emissão (de interesse na hipótese) fez-se em série única, e foram dois os subscritores: a Fundação P (P), e o Ban-

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co B S/A (B). A primeira subscreveu 3.450 debêntures e o segundo 1.000.

A E veio a impetrar concordata preventiva, e, nesta, a OTS/A, na qualidade de agente fiduciário, habilitou o crédito dos deben-turistas, no valor total de R$ 72.300.408,00, correspondendo R$ 51.343.768,00 ao crédito da P e R$ 20.956.640,00 ao do B. Este preferiu apresentar sua própria habilitação de crédito, de modo que, no procedimento acima mencionado, somente se determinou a inclusão do crédito da P no quadro geral de credores da concordata.

Posteriormente, o processo de concordata foi extinto, uma vez que, entrando em vigor a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lèi de Recuperação de Empresas e Falências, ou LRE), a devedora impetrou recuperação judicial, envolvendo os créditos submetidos à concordata. Deferido o processamento da recuperação, impunha-se a extinção da medida antes ajuizada.

O plano de recuperação da E previa originalmente, quanto aos debenturistas, o pagamento destes em três parcelas bimestrais, o que se faria por meio da dação em pagamento de duplicatas, no valor total aproximado de R$ 6,7 milhões. Além disso, os titulares de debêntures receberiam 27% das cotas do capital de sociedade a ser constituída, cujo património seria formado por 11 fazendas de reflorestamento, e um imóvel urbano. Teriam, com isso, participação em atividade florestal a ser desenvolvida pela E nessas fazendas, que lhe seriam arrendadas pela empresa acima referida.

Propunha-se, ainda, alternativamente, a conversão, no todo ou em parte, das debêntures em ações da devedora. Isto, evidentemente, a critério dos debenturistas (cf. pp. 6 e 7 do plano de recuperação).

Algumas instituições financeiras credoras apresentaram objeções. Designada assembleia geral de credores, os bancos impugnantes (/ BBA, /, B eU) propuseram alterações ao plano. Basicamente, os cre-dores foram agrupados segundo a forma de equacionamento proposta. Assim, os proponentes, integrantes das classes I e II segundo a divisão prevista na Lei de Recuperação de Empresas, compunham o Grupo A, prevendo-se, para eles, que o pagamento seria em parte parcelado e em parte ob-jeto de dação de fazendas de reflorestamento.

Os debenturistas -P cB- por sua vez, formavam o Grupo B, estabelecendo-se, para eles, o pagamento em 48 parcelas mensais. Quanto aos demais credores, aos quais correspondiam os Grupos C, D, E, e F, manteve-se fundamentalmente o plano original. .

Ainda na assembleia, a devedora, embora salientando que a proposta apresentada pelos bancos alterava 80% dos créditos e influía na liquidez da empresa, manifestou sua aquiescência, desde que fossem aprovadas novas modificações no plano. A principal dizia respeito aos debenturistas, que passariam a ser pagos exclusivamente pela conversão de seus créditos em ações da E. Os demais credores receberiam em dinheiro ou imóveis.

A P pronunciou-se contrariamente, argumentando que o plano submetido à deliberação dava "tratamento diferenciado a credores da mesma classe", infringindo o disposto na Lei de Recuperação de Empresas. O plano, contudo, na sua última versão, foi aprovado. Na classe integrada pelos debenturistas, votaram favoravelmente os titulares de 77,5% dos créditos, sendo voto vencido a P, credora dos restantes 22,5%.

Cumpre notar que as instituições tinham maioria de votos nas classes II e III, è que inexistia a classe I. Observe-se, ainda, que, em especial na classe III, os credores receberam tratamento diferenciado, e que a P foi a única a receber seu crédito somente em ações (o B tinha também créditos da classe II).

AP peticionou nos autos, pleiteando a rejeição do plano, fundado no tratamento

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desigual aos credores e na imposição de prejuízo a um credor, "em favor de todos os demais".

A MM. Juíza, apreciando a hipótese, salientou não ter sido irregular a aprovação pela assembleia geral de credores (AGC) da contraproposta apresentada pela devedora, assinalou que a LRE "não exige que os credores obtenham a satisfação de seus créditos de modo uniforme", e que foi idêntico ao da P "o pagamento do outro credor quirografário por debêntures". Diante disso, homologou o plano aprovado pela AGC e concedeu a recuperação judicial. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.

Contra essa r. decisão a P interpôs agravo, ora em processamento. Entre outros fundamentos, alega, no...

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