O reexame das decisões judiciais ao longo dos tempos

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas7-26
Cadernos de Processo do Trabalho n. 22 – Recursos – Parte Geral I
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Capítulo I
O reexame das decisões judiciais ao
longo dos tempos
1. Escorço histórico
A aptidão para formular juízos de valor a respeito das coisas do mundo
sensível em geral constitui, sem dúvida, um dos mais signicativos predicados
da racionalidade humana; daí por que o notável lósofo René Descartes – funda-
dor do moderno racionalismo (penso, logo existo) – pôde armar, com inegável
acerto, que “o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é
propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é igual, por natureza,
em todos os homens” (“Discurso sobre o Método”, trad. de Paulo M. Oliveira,
Rio de Janeiro, Edit. Athena, sem data, pág. 9).
Esse atributo, todavia, adquire extraordinária importância quando, ajus-
tado à óptica do ordenamento jurídico em vigor, é utilizado na apreciação dos
próprios atos humanos, ou dos fatos da vida em sociedade – pois se sabe que o
homem, a partir de certo momento de sua história, tornou-se julgador dos seus
semelhantes, na ordem terrena, seja para reconhecer-lhes a existência de um
direito; seja para compeli-los a respeitar a esfera jurídica alheia, seja para o que
mais fosse necessário ou conveniente.
Pode-se sustentar, por isso, que o homem, a par de reconhecidamente
gregário, é também um ente capaz de julgar.
As fontes revelam, a propósito, que no curso da História a gura do julga-
dor precedeu, em muito, à do legislador; com efeito, o ofício de julgar, bem antes
da existência da judicatura de natureza institucional, foi cometido aos sacerdo-
tes (cujas decisões supunham-se consoantes com o desejo das divindades) ou aos
anciãos (que eram, pela longa vivência, profundos conhecedores dos costumes do
grupamento social a que os indivíduos em conito se achavam integrados).
mais tarde foi que o Estado avocou, em caráter monopolístico e como medida
tendente a preservar a estabilidade das relações sociais, o encargo de compor
heteronomamente as lides, instituindo, para essa nalidade, um poder especí-
co: o Judiciário.
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Manoel Antonio Teixeira Filho
A falibilidade, contudo, sempre se fez inerente à natureza humana; sendo
assim, a possibilidade de haver equívoco ou qualquer outra erronia (involun-
tária, ou não) nas decisões proferidas pelos julgadores logo aorou à consciên-
cia de todos, e, em particular, do legislador, como algo tão natural e inevitável
quanto o próprio ato de pensar. Também não se perdeu de vista a circunstância
de alguns julgamentos serem até mesmo suscetíveis de sofrer fortes inuên-
cias de fatores subjetivos, como a emoção, ou de certas injunções externas,
como, v.g., as pressões do poder constituído, da Igreja, a ingerência das classes
dominantes, os interesses de grupos etc.
Parece-nos razoável reconhecer nessa espécie de consciência de falibili-
dade das decisões humanas a causa essencial e remota de haver-se permitido
– e em alguns casos tornado obrigatório – o reexame dos pronunciamentos
jurisdicionais por órgão, em regra, hierarquicamente superior. Do ponto de
vista eminentemente objetivo, todavia, não há negar que essa revisão dos
julgamentos surgiu para atender aos inomitíveis imperativos de justiça e de
credibilidade das resoluções judiciais, como forma de preservar a própria
paz social. Os jusnaturalistas, porém, sustentam que os recursos decorrem
do direito natural; dentre eles, citamos Gouvea Pinto. Não concordamos, data
venia, com esse entendimento. Pode-se dizer que o anseio de justiça seja algo
que se relacione com o direito natural; não há, todavia, como vislumbrar nesse
direito o fundamento do instituto recursal, uma vez que – embora infrequente
– há casos em que uma sentença justa é substituída por um acórdão injusto,
conforme já advertia Ulpiano.
Seria inescusável omitir, por outro lado, que esse revisionamento teve, em
determinadas épocas, um escopo marcadamente político, bastando lembrar a
atuação dos Príncipes, no século XV, que, ao se tornarem antifeudais, passaram
a empenhar-se, com denodo, na centralização – e no consequente monopólio –
da atividade legislativa e da administração da justiça, como estratagema sutil
para provocar o enfraquecimento dos feudos. Tal fato levou Glasson e Tissier a
armarem, com razão, que “l’histoire du droit d’appel est étroitement mêlée à l’his-
toire des progress du pouvouir royal” (“Traité Théorique et Pratique d’Organisation
Judiciaire de Compétence et de Procédure Civile”, vol. I, pág. 81). Em tradução
livre: “A história do direito de apelação está estreitamente ligada ao progresso
do poder real”.
Nesse quadro de prepotência e de despotismo, avultava-se, como uma espé-
cie de senhor da justiça, a gura do rei; qualquer julgamento somente poderia
ser realizado por ele, ou mediante sua delegação de poderes. Ao monarca cava
reservado, em qualquer hipótese, o direito de rever as decisões prolatadas por
seus prepostos; essa prerrogativa o fazia, à evidência, todo poderoso diante dos
senhores feudais, dos suseranos, e, em sentido mais amplo, dos reinóis em geral.
Vale ser mencionado, como espelho el e expressivo desse período, o § 1.º do
Título V, Livro III, das Ordenações Filipinas, que estatuía: “Porém, nós poderemos
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