Reflexões sobre a justiça criminal dos povos indígenas no Brasil e nos Estados Unidos da América à luz do pluralismo jurídico/Reflexions on indigenous peoples' criminal justice in Brazil and in the United States of America in the light of legal pluralism.

AutorBragato, Fernanda Frizzo
  1. Introdução

    Os povos indÃÂgenas já habitavam o que hoje se conhece por Américas, antes mesmo da constituição de paÃÂses soberanos resultantes de processos de independência de suas metrópoles europeias e, portanto, da conquista e da colonização do continente. Como Estados soberanos, cada paÃÂs da região trata as questões indÃÂgenas de forma própria, mais ou menos influenciada pelo direito internacional dos povos indÃÂgenas, que lhes garante o direito àautodeterminação. Uma das principais questões está ligada ao direito coletivo àterra, porque é a partir do estabelecimento deste espaço demarcado que as comunidades indÃÂgenas são capazes de exercer o autogoverno e dar continuidade ao seu modo diferenciado de vida.

    A grande maioria dos povos indÃÂgenas ainda enfrenta enormes obstáculos para recuperar ou garantir o direito de posse ou propriedade sobre suas terras e de consequente autodeterminação. Porém, mesmo entre aqueles cujas terras são demarcadas e reconhecidas pelo Estado cujo território habitam, as possibilidades de exercer o autogoverno ainda são limitadas. No caso do exercÃÂcio da jurisdição e da administração da justiça em casos criminais, o tratamento nos paÃÂses do continente americano é bastante variado.

    Nessa linha, o artigo parte do pluralismo jurÃÂdico, cuja tese principal é a negação de que o Estado seja a única e exclusiva fonte de todo o Direito, minimizando ou negando o monopólio de criação de normas jurÃÂdicas por parte do Estado (WOLKMER, 2015) para analisar o problema da jurisdição criminal dos povos indÃÂgenas no Brasil e nos Estados Unidos da América. A teoria do pluralismo jurÃÂdico faz referência àcoexistência de diferentes sistemas, práticas ou ordenamentos jurÃÂdicos em um mesmo espaço social com processos de interação (CANO; FRANCO, 2022), estando os povos indÃÂgenas neste cenário de disputa polÃÂtica e jurÃÂdica pelas suas pautas e reinvindicações (ROCHA; TRENTI, 2022).

    O pluralismo jurÃÂdico aceita que instâncias sociais e outros atores, providos de certa autonomia e identidade própria (1), produzam outras formas de regulamentação (WOLKMER, 2015). Assim, não é possÃÂvel, por exemplo, compreender o Direito no Brasil sem atentar para o pluralismo e para os múltiplos atores sociais que promovem e animam as mudanças legais (BRAGATO, 2022).

    O objeto deste artigo é um estudo reflexivo entre o sistema de Justiça Criminal dos Povos IndÃÂgenas no Brasil e nos Estados Unidos da América, uma vez que, em ambos os paÃÂses, os povos nativos passaram por processos semelhantes de colonização e colonialismo, mas no Brasil praticamente não há estudos sobre o sistema norte-americano, o que pode aportar contribuições para se repensar essa questão no paÃÂs. Assim, o problema que norteia a pesquisa é: quais as lições que o Estado brasileiro pode tirar da reflexão do seu sistema de jurisdição criminal indÃÂgena com o sistema estadunidense no sentido de efetivar o direito àautodeterminação dos diferentes povos indÃÂgenas que habitam o paÃÂs?

    Trata-se de trabalho descritivo e expositivo, cujo objetivo é destacar as diferenças entre os dois sistemas de justiça criminal e apontar caminhos que possam ser seguidos pelo Estado brasileiro em direção ao incremento do direito àautodeterminação dos povos indÃÂgenas e ao reconhecimento do pluralismo jurÃÂdico. O método utilizado no desenvolvimento da pesquisa será o de revisão bibliográfica e o de estudo de caso, tendo como técnicas de pesquisa a bibliográfica, a documental e a jurisprudencial, com análise de dados de forma qualitativa.

  2. Jurisdição Criminal para os Povos IndÃÂgenas nos Estados Unidos da América

    Nos Estados Unidos da América (EUA), predominam três denominações para pessoas indÃÂgenas, quais sejam: ÃÂndio/indÃÂgena americano, "American Indian"; nativo do Alasca, "Alaska Native" (AI/AN); e o nativo americano, "Native American". O "American Indian" são as pessoas pertencentes às nações tribais dos Estados Unidos continentais (ÃÂndio/indÃÂgena americano), e o nativo do Alasca, "Alaska Native", às nações tribais e aldeias do Alasca. Já os "Native Americans" são todos os nativos dos Estados Unidos e seus territórios e as pessoas dos povos originários canadenses e comunidades indÃÂgenas no México e América Central e do Sul que são Residentes nos EUA (BIA, 2017).

    De acordo com os dados do Censo de 2020, a população de indÃÂgenas americanos e nativos do Alasca, isoladamente e em combinação, é de 9,7 milhões, representando um acréscimo de 86,5%, e conformando 2,9% da população dos EUA (U.S. CENSUS BUREAU, 2020). O governo federal estadunidense reconhece oficialmente 574 Nações IndÃÂgenas (também chamadas de tribos, nações, bandas, povos/pueblos, comunidades e aldeias nativas) naquele paÃÂs (NCAI, 2020).

    Destarte, quando os colonizadores europeus chegaram ao território em que hoje são os Estados Unidos da América, eles interagiram com nações indÃÂgenas originárias em assuntos de diplomacia, comércio, cultura e guerra, reconhecendo os seus sistemas de governança cultural, econômica e polÃÂtica (NCAI, 2020). Quando, em 1776, os Estados Unidos tornaram-se independentes, os fundadores reconheceram a soberania das nações indÃÂgenas, ao lado dos estados, nações estrangeiras e do governo federal na Constituição dos EUA (NCAI, 2020). A soberania das nações indÃÂgenas nos EUA sempre foi reconhecida, sendo consideradas comunidades polÃÂticas distintas e independentes, detentoras de seus direitos territoriais originários. Este entendimento foi consagrado em um dos três famosos casos da "trilogia Marshall" (2), julgados pelo Juiz da Suprema Corte, John Marshall, qual seja o caso Worcester v. Georgia, 31 US 515 (1832):

    As nações indÃÂgenas sempre foram consideradas comunidades polÃÂticas distintas e independentes, mantendo seus direitos naturais originais como possuidoras indiscutÃÂveis do solo, desde tempos imemoriais, com a única exceção daquela imposta pelo poder irresistÃÂvel, que as excluÃÂa do intercâmbio com qualquer outra potência europeia que não a do primeiro descobridor da costa da região reivindicada, e esta foi uma restrição que aquelas potências europeias impuseram a si mesmos, bem como aos ÃÂndios. O próprio termo "nação", tão geralmente aplicado a eles, significa "um povo distinto dos outros". A Constituição, ao declarar os tratados já celebrados, bem como os a celebrar, como a lei suprema da terra, adotou e sancionou os tratados anteriores com as nações indÃÂgenas e, por conseguinte, admite a sua classificação entre os poderes capazes de fazer tratados (UNITED STATES, 1832) (3). Porém, o entendimento mantido atualmente, é aquele julgado no caso Cherokee Nation v. Georgia (1831). Neste caso, em que pese reconhecido que os Cherokee representassem uma sociedade distinta dos EUA, ainda estavam sob a proteção do governo estadunidense. Entretanto, com base na tese das nações domésticas soberanas, às nações tribais ainda se conferiria um determinado grau de autonomia, pois enquanto entidades polÃÂticas e legais, podiam administrar assuntos internos e relações diretas com o governo federal (ANDERSON et al., 2008). O que lhes garantiu uma certa proteção quanto às ameaças das elites locais dos governos estaduais sobre a apropriação de seus territórios (LYTLE; DELORIA, 1983).

    A seção 8 do artigo 1 da Constituição estadunidense confere ao Congresso o pleno poder de "regular o comércio com nações estrangeiras, entre os vários estados e com as tribos indÃÂgenas" (UNITED STATES, 1787) (4). Centenas de tratados firmados, primeiro com a Coroa Britânica e depois com o governo federal dos Estados Unidos, além dos pronunciamentos da Suprema Corte, afirmaram repetidamente que as Nações IndÃÂgenas mantêm seus poderes inerentes de autogoverno. Esses tratados, ordens executivas e leis criaram um contrato fundamental entre as nações tribais e os Estados Unidos. As Nações IndÃÂgenas estão localizadas dentro das fronteiras geográficas dos Estados Unidos, enquanto cada uma exerce sua própria soberania interna em seus territórios (NCAI, 2020).

    Muitas Nações IndÃÂgenas também criaram seus próprios sistemas judiciais que administram códigos aprovados pelo conselho tribal. Em muitas nações tribais, os juÃÂzes são eleitos pelo voto popular; em outros, o conselho tribal nomeia juÃÂzes. Cerca de 60% dos governos tribais são baseados nas constituições do "Indian Reorganization Act" (IRA) de 1934 (5).

    ANDERSON et al. (2008) ensinam que as duas ideias básicas de "tribe" (Nação IndÃÂgena) (6) e "Indian country" definem muito do escopo da lei federal indÃÂgena e das regras de jurisdição especial. O reconhecimento legal de um grupo como "tribe" determina se a lei protegerá seus poderes de autogoverno, se o grupo e seus membros terão direito a serviços indÃÂgenas federais, como assistência médica e educacional, e se será capaz de proteger seu território usando a "Non-Intercourse Act", 25 U.S.C. "Tribe" significa qualquer tribo, bando, nação ou outro grupo ou comunidade indÃÂgena que seja reconhecido como elegÃÂvel para o programa e serviços especiais fornecidos pelos Estados Unidos aos indÃÂgenas devido àsua condição indÃÂgena (ANDERSON et al., 2008 p. 247). (7)

    "Indian country", por sua vez, define o...

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