Reflexões sobre a inclusão do § 3º no Art. 8º da CLT pela Lei n. 13.467/2017

AutorZélia Maria Cardoso Montal
Páginas215-223

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Zélia Maria Cardoso Montal1

Respeitar a Constituição é muito mais do que apegar-se a um legalismo formal, satisfazendo-se com a existência de uma Constituição escrita e com o reconhecimento de sua superioridade hierárquica […] Esse respeito é indispensável para a proteção da dignidade humana e a consecução de uma ordem social justa, na qual as relações políticas e sociais sejam pautadas pelo Direito, estando garantido o efetivo respeito aos direitos fundamentais de todos os seres humanos.

Dalmo de Abreu Dallari 2

Introdução

A Lei n. 13.467/2017, que entrou em vigor em 11 de novembro de 20173, e instituiu a denominada “reforma trabalhista” trouxe muitas alterações no âmbito dos direitos trabalhistas, modificando vários dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho e inserindo tantos outros.

Uma das mais significativas alterações é representada pela inclusão dos §§ 1º, 2º e 3º no art. 8º da CLT, no sentido de prestigiar a aplicação do direito comum no âmbito do direito do trabalho sem a exigência da compatibilidade com suas normas (§1º), alterando substancialmente o que outrora dispunha o parágrafo único do indigitado dispositivo legal; de reduzir a atividade jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho (§ 2º), e de restringir a intervenção do Poder Judiciário Trabalhista na apreciação e julgamento das lides, sobretudo quando envolvam diretos contemplados nos Instrumentos Normativos, através acordos coletivos e convenções coletivas do trabalho (§ 3º).

Em que pese ser atribuição do Poder Legislativo estabelecer leis para pautar a conduta dos homens em sociedade, a Constituição não lhe confere “carta branca” para atuar conforme a sua conveniência, posto que sua atuação deve seguir os parâmetros estabelecidos na própria Constituição.

O § 3º do art. 8º da CLT, com a redação conferida pela Lei n. 13.467/2017, dispões que “no exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.”Tal preceito normativo, objeto de reflexão na presente análise, conflita, em primeiro momento, com o princípio da separação dos poderes, pois tenta uma intervenção indevida na atuação do Poder Judiciário Trabalhista, afronta princípios basilares, em especial aqueles referentes à interpretação e aplicação do Direito.

Ademais, o indigitado dispositivo legal busca atribuir à autonomia privada coletiva uma preponderância que nem mesmo à lei é conferida, constitui uma ameaça ao princípio da não regressividade dos direitos fundamentais, além de representar entrave ao amplo acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho, por restringir as matérias sujeitas à apreciação do magistrado trabalhista, como será analisado a seguir.

Limites à atuação do poder judiciário trabalhista

O art. 8º e §§ 1º, 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho com alteração introduzida pela Lei n. 13.467 de 2017, operou mudanças significativas, como se vê:

Art. 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito,

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principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

§ 1º O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho. (redação conferida pela Lei n. 13.467/2017)

§ 2º Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legal-mente previstos nem criar obrigações que não estejam pre-vistas em lei. (incluído pela Lei n. 13.467/2017)

§ 3º No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva. (incluído pela Lei n. 13.467/2017)

O exame das alterações introduzidas pela Lei n. 13.467/2017 como um todo parece indicar que se operou significativa redução dos direitos dos trabalhadores, A análise do aludido dispositivo legal, em particular, permite evidenciar a clara intenção do legislador infraconstitucional de limitar ao máximo a atividade interpretativa do julgador no âmbito trabalhista.

Essa pretensa limitação, extrapola os limites da constitucionalidade quer por estar em desacordo com o princípio da separação dos poderes, quer por buscar inibir a atuação do Juiz do Trabalho. Não se pode ter por válida a pretensão do Poder Legislativo de interpor entre a norma e a atividade interpretativa do juiz um obstáculo intransponível, não compete ao legislativo obstaculizar a atuação de outro Poder.

O Juiz na sua tarefa de intérprete do Direito deve atribuir à norma o significado que estiver de acordo com a Constituição e com os instrumentos internacionais aos quais o Brasil aderiu.

Conforme lição de Konrad Hesse: “A Constituição é concebida como uma unidade material, seus conteúdos são qualificados frequentemente como valores fundamentais, prévios ao ordenamento jurídico positivo.”4

Dessa forma, o indigitado § 3º afronta, em primeira compreensão, o princípio da separação de poderes. É a própria Constituição que realiza a separação das funções dentro do Estado (art. 2º, CF). Não é dado a um dos Poderes, no caso o Poder Legislativo, simplesmente determinar como e em que medida o Judiciário poderá ou deverá atuar, interpretar e julgar os casos que são submetidos à sua apreciação.

Com efeito, “se ao Judiciário não cabe colocar as normas em vigor”5, tão menos compete ao Poder Legislativo estabelecer matérias sobre as quais o Judiciário ficará inibido de manifestar-se. A se admitir tal possibilidade o princípio da separação dos Poderes do Estado6 restaria seriamente comprometido.

Em outras palavras, o legislador infraconstitucional não teve em linha de consideração que um dos pilares da República Federativa do Brasil é a independência e harmonia entre os três poderes, conforme art. 2º, da Carta Constitucional: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Neste pensar, o princípio da separação dos poderes “é ancorado na acepção de discricionariedade: um poder está proibido de invadir a discricionariedade dos outros. Este o ponto de equilíbrio, a linha fronteiriça. […] Para bloquear o abuso é indispensável que o poder freie o poder, o que demanda equivalência.”7

Os Estados são os responsáveis principais e incontornáveis pela proteção e promoção dos direitos do homem, quando um dos Poderes do Estado se descura dessa responsabilidade, cabe ao outro Poder, de acordo com a concepção clássica da separação de poderes adotada pela nossa Constituição (art. 2º, CF), e dentro do sistema “checks and balances” (sistema de freios e contrapesos)8, sistema de controle mútuo, corrigir a distorção verificada. Nessa perspectiva, não pode a legislação infraconstitucional pretender inibir uma das atribuições do Poder Judiciário, não estando o Poder Legislativo autorizado a interferir na atuação do Poder Judiciário.

Indo além nesse pensamento, destaca-se o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”

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Como afirma Marcelo Caetano9 “para que num Estado exista liberdade política é preciso que estes três poderes não estejam reunidos nas mesmas mãos e que se repartam por órgãos diferentes de maneira que, sem nenhum usurpar as funções dos outros, possa cada qual impedir que os restantes exorbitem da sua esfera própria de acção.”

Portanto, examinando sob a ótica constitucional é inviável a limitação da atuação do Poder Judiciário Trabalhista pelo legislador infraconstitucional não só por representar afronta ao princípio da separação harmônica entre os poderes, como também por violar a autonomia do juiz do trabalho, com reflexos negativos na sua independência funcional, condicionando sua atuação e transformando-o de intérprete da lei em mero aplicador das normas estabelecidas nos instrumentos normativos.

A concepção de juiz “boca da lei” (na hipótese sob análise juiz “boca dos instrumentos normativos”), defendida por Montesquieu, preconizava serem os juízes mero reprodutores dos textos legais, não mais que a boca que pronuncia as palavras da lei, mas, atualmente essa tese não encontra eco no sistema constitucional pátrio que alberga o princípio da separação de poderes como postulado básico e concebe como garantia do cidadão a liberdade do juiz de formar sua convicção com esteio nas normas que compõem o ordenamento jurídico (art. 93, IX, CF). A esse propósito, Lenio Luiz Streck observa “a atividade jurisdicional se despe da mítica de ser mera reprodução, robótica, neutral, fiel da lei. A jurisdição não é simplesmente declaratória (de algo que já existe pronto, feito), é criativa. […] a divisão de poderes […] vem em favor tanto das liberdades públicas, dos direitos civis, quanto dos direitos sociais, da cidadania ativa […]”.10

No mesmo sentido, Faustino Martínez Martínez citando o...

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