Reforma do Judiciário: cidadania e novos direitos

AutorÁlvaro Filipe Oxley da Rocha
CargoDoutor em Direito do Estado (UFPR), Mestre em Ciência Política (UFRGS). Professor e pesquisador da UNISINOS.
Páginas63-93

Page 63

Considerações iniciais

O presente artigo se propõe a expor o tema que se vem desenvolvendo em pesquisa sobre o problema da realização da cidadania no Brasil, com destaque para a reforma do Judiciário2 , e o modo como podem se relacionar as modificações propostas pela Emenda Constitucional n°45 com a necessidade de implementação dos chamados “novos direitos”3 de cidadania, vistos aqui como instrumentos legais na tarefa judicial de equilibrar interesses individuais e coletivos na dinâmica social, implícita no objetivo republicano da promoção do bem de todos, em acordo com a primeira parte do inciso IV do artigo terceiro da Constituição Federal de 1988.

Preliminarmente, é preciso lembrar que, a partir da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a jurisdição constitucional ganha proeminência. Muitos grupos sociais brasileiros passaram a ver no Judiciário uma saída para concretizar Page 64 direitos sociais, buscando desde então essa via, pelo mecanismo do controle abstrato e/ou concreto da constitucionalidade das leis. Observaram-se os sindicatos, organizações não governamentais, partidos políticos e até mesmo o cidadão individual, esgotando ou não a via da luta política legislativa, buscando pelo ingresso de ações judiciais um posicionamento do Judiciário, como instância final idealizada, tanto para deslocar a disputas políticas de seu lugar legítimo para uma arena mais estável, ainda que inadequada, como para garantir a realização de direitos sociais à revelia dos caminhos institucionais já desacreditados. Esse movimento social foi denominado “judicialização da política” e assim tratado por diversos autores4 . Observe-se que o mesmo representou também, inversamente, uma “politização” do Judiciário, pois embora tenham surgido movimentos internos politizados da magistratura, como o chamado “Direito Alternativo”5 , a maioria dos magistrados resistia, e muitos ainda resistem, a adotar uma concepção menos “dogmática”6 do Direito. Ao mesmo tempo, e aliadas a fatores políticos nacionais e internacionais7 , essas novas posturas aprofundaram a crise8 do Estado brasileiro, em especial no Judiciário, cujos agentes não mais dispõem dos mecanismos sociais e jurídicos tradicionais que os furtavam do embate político.

A partir da nova postura constitucional do Judiciário, surge uma expectativa quanto ao posicionamento de seus agentes no que se refere à efetivação de uma cidadania brasileira. Com a reforma do Judiciário, efetivada pela Emenda Constitucional n° 45, instrumentalizam-se melhor esses agentes para essa tarefa. A face mais visível dessa mudança seria, em nossa concepção, a busca de uma efetiva concretização dos chamados “novos direitos”, visto representarem os mesmos alguns dos pontos mais sensíveis das demandas sociais de nossa coletividade.

Entretanto, preliminarmente, que vem a ser cidadania? Como adiante veremos, o conceito tem sido nublado pela concepção tradicional, que o restringe ao exercício de direitos políticos9 . Essa noção, entretanto, exclui o direito a tomar parte na formação da agenda pública no âmbito da sociedade civil, que inclui todos os direitos10 estabelecidos nos artigos e da Constituição Federal11 . Por todos os interesses que representa, e pelos privilégios que eventualmente ameaça, em nosso contexto social, a cidadania tem uma difícil conceituação, que merece não apenas ser ampliada, mas também estabelecida como parte da cultura jurídica e social, visto que esse conceito é possível apenas em ambiente político dePage 65democracia12 .

É nesse sentido que nos interessa conhecer o teor da Emenda Constitucional nº45, a qual promoveu modificações extremamente importantes na estrutura do Judiciário, que se refletirão necessariamente no modo como deverão os juízes pautar suas ações em futuro próximo. Para os limites deste artigo13, propomos apresentar e tecer considerações sobre apenas alguns dos pontos da Emenda 45, aqueles que consideramos mais diretamente relevantes para a realização da cidadania, em seu sentido amplo. Os pontos que destacamos são: a) a razoável duração do processo; b) a instituição do Conselho Nacional de justiça – CNJ; c) a obrigatoriedade de comprovação de três anos de atividades jurídicas aos candidatos aos cargos de juiz; d) o efeito vinculante nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade; e) a Justiça Itinerante; f) o deslocamento de competência para a Justiça Federal dos crimes contra os Direitos Humanos; g) a criação de varas especializadas nas questões fundiárias; e h) a autonomia das Defensorias Públicas. Em conseqüência disso, visto que a concretização da cidadania ampla inclui os “novos direitos”, ou “direitos de cidadania”, os quais instrumentalizam o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos, que se impõem como tarefa constitucional ao Judiciário, propomos também apontar e comentar esses direitos, em especial os direitos da criança e do adolescente, os direitos das mulheres, os direitos indígenas, o problema do racismo, os direitos dos idosos, o direito do consumidor, o direito ambiental, o biodireito e os reflexos da difusão da informática e da dinâmica de uma nova sociedade de informação sobre os novos direitos. Finalmente, nos propomos a fazer uma breve reflexão sobre o sentido da realização dos direitos de cidadania pela via judiciária, com suas vantagens e limitações, já que um dos pressupostos de senso comum a respeito da realização desses direitos, típico da dinâmica de transição da concepção de Estado liberal para o Estado social, é o da fuga ao complexo problema da transformação social, transferindo-se ou impondo-se a completa responsabilidade na realização desses direitos ao Judiciário, como um quase monopólio. Isso surge como problema14, na medida em que apenas contribui para que se reforce a antiga idéia de uma autonomia sistêmica do direito15 , resultando nas tradicionais respostas imobilistas - o Judiciário não é o local da inovação, e sim o Legislativo – e também num desnecessário efeito de legitimação dos juízes e juristas, passando-se ao largo de efetivas mudanças na ação desses agentes, no sentido da concretização dosPage 66direitos de cidadania16.

1 Qual cidadania?

O conceito de cidadania, do ponto de vista jurídico tradicional, está ligado em primeiro lugar à condição de morador da cidade, e, por extensão, do país, demonstrando a efetividade de residência. Desse modo, possui cidadania natural o indivíduo nascido em território nacional, que pode participar da vida política do país, em oposição ao indivíduo estrangeiro, em situação especial no território, mas também detentor de direitos embora mais limitados, inclusive o de obter a cidadania brasileira, denominada então cidadania legal, embora muitos cargos e direitos permaneçam reservados aos chamados cidadãos natos. Esse sentido da palavra cidadania está, pois, ligado ao exercício de direitos políticos, como votar e ser votado17 . Nesse sentido, bastante limitado, costuma-se citar o caso dos analfabetos, que se tornariam cidadãos ativos quando inscritos como eleitores, mas não podendo se tornar cidadãos passivos por não possuírem elegibilidade, quer dizer, por não poderem os mesmos se candidatar a mandatos políticos eletivos. Muitas conceituações jurídicas encerram estritamente nesse ponto o debate, deixando a desejar uma discussão mais ampla do conceito.

Como chegar, porém, a um conceito amplo de cidadania? Hoje é voz corrente o uso dessa expressão quando se fala da participação nos processos de tomada de decisões que se refletem na coletividade, em especial diante das grandes mobilizações populares. Parece estar se difundindo, especialmente via mídia18 , a noção de que a cidadania é uma espécie de direito de imunidade contra as ações autoritárias. Ao mesmo tempo, esse conceito remete ao problema da distribuição de renda, estabelecendo, por critério meramente econômico, uma idéia de “classes” sociais hierarquizadas, na verdade apenas duas, uma detentora da renda, do poder político, e da vida boa ligada a essas condições, e outra “classe”, alienada não apenas a esses dois fatores, mas também de tudo o que está afeto à posse de recursos financeiros, como moradia, saúde, etc., fundamentalmente sem acesso a uma educação adequada e, pois, sem acesso à vida social como cidadão19.

Guardadas as devidas proporções, a discussão desse conceito estáPage 67presente desde a formação das raízes do pensamento ocidental. Lembrando que o sentido da democracia grega não era da mesma natureza do que hoje atribuímos a essa palavra20 , podemos citar a obra de Aristóteles21 , na qual o mesmo questiona quem vem a ser o cidadão e afirmando que “cidadão é aquele que tem uma parte legal na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária da cidade”, visto que a Assembléia da qual o cidadão participava tinha poderes tanto para decidir como para legislar e julgar. Participar da assembléia significava ser visto pelos demais como um entre iguais, podendo o participante fazer uso da palavra para criticar, propor, opinar, externando, por todos os meios, o seu interesse pelo presente e pelo futuro da cidade. Poderia também, nesse sentido, assumir cargos na administração pública como parte de sua condição de participante, não significando, na verdade, que o mesmo dispusesse de direitos que limitassem o poder da Assembléia, mas apenas que, ao aceitar participar, também aceitaria o dever de submissão às decisões, em qualquer sentido, que viessem a ser tomadas pela coletividade22 .

Entre os romanos, o conceito de cidadania (civitas) era bastante ampliado, partindo do reconhecimento pelos pares e todos os demais direitos da vida civil, incluindo, na esfera privada, os direitos de propriedade, família, contratos e, na...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT