O regime das participações societárias recíprocas e as sociedades por quotas de responsabilidade limitada

AutorOtávio Yazbek
Páginas54-63

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I - Objeto
  1. O presente estudo trata da possibilidade de aplicação do regime estabelecido pelo artigo 244 da Lei 6.404, de 15.12.1976, para as participações societárias recíprocas, às sociedades por quotas de responsabilidade limitada.

    Tal questão impõe-se por uma série de motivos, podendo-se ressaltar, dentre os principais, a amplitude do uso das sociedades por quotas de responsabilidade limitada na prática comercial brasileira e a consequente necessidade de extensão a estas do regime aplicável aos chamados "grupos societários de fato", forma de concentração empresarial mais utilizada no Brasil. Daí surgem, ainda, diversos questionamentos, como adiante veremos.

  2. O objeto desse estudo tem por pano de fundo uma preocupação com a problemática decorrente do famoso hibridismo institucional das sociedades por quotas no direito brasileiro e a questão, a esta vinculada, da aplicabilidade de soluções institucionais típicas da Lei das S.A. àquele tipo societário.

II - Metodologia
  1. Para o trato das questões acima, e pela sua capacidade para suprir as dificuldades decorrentes da análise do direito por um prisma meramente formal, faremos uso do método chamado funcionalista.1

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    Trata-se de abordar os institutos jurídicos não apenas com base em sua estrutura jurídica formal ou estrutural, partindo para a análise das reais funções económicas e sociais de cada instituto. Em especial na área de que tratamos, a análise formalista apresenta-se por demais limitada. A dinâmica económica não permite a estagnação das formas negociais e, na medida em que os regramentos positivados começam a distanciar-se das funções para as quais foram criados, as necessidades da vida negociai passam a exigir a adaptação dos mesmos, a moldar novas formas (essa, a natureza con-suetudinária do direito comercial).

    Ora, no direito mercantil as formas jurídicas tem sua "modelagem" determinada historicamente pela sua finalidade económica conjugada àquelas condições materiais existentes quando do surgimento de cada instituto. Decorrência desse movimento histórico e da acumulação das formas nele surgidas é uma certa fungibilidade de formas jurídicas nas sociedades modernas, nas quais, por caminhos diversos, torna-se possível a consecução de fins económicos bastante similares (Ascarelli, 1947:17 e ss.).2

    Assim, para uma adequada compreensão desta dinâmica e para a integração do sistema jurídico, mostra-se de grande valia a análise do direito fundada nas suas funções económicas. Tal método é importante não apenas para a compreensão do jurídico, mas também para a crítica das estruturas vigentes, atribuindo às formas jurídicas uma maior dinâmica, na medida em que as impulsiona para o atendimento das novas necessidades económicas.

  2. É importante frisar que, ao falarmos nas funções dos institutos jurídicos, cogitando de funções específicas, de situações concretas, não deixamos de lado a possibilidade que se abre para uma compreensão mais ampla das relações entre o jurídico e os demais planos da vida social, de onde provém, ainda, uma boa parte do potencial crítico e interpretativo deste método. Tal postura é bem esclarecida por Renner: "In questa analisi, non possiamo tralasciare un'esposizione generale delle funzioni degli istituti giuridici: ogni singola funzioni, che è storicamente condizionata, ha Ia própria posizione nella totalità e viene pienamente illuminata solamente da essa; Io schema delle funzioni ha dunque perlomeno un valore orientativo. In che maniera può venire esposta una concreta particolarità se non mediante un rapporto di reflesso alia totalità?" (1981:52).3

III - Problemática dos grupos de sociedades
  1. Corolário ao que parece necessário do desenvolvimento do sistema capitalista e, ao mesmo tempo, um dos principais mecanismos atuais para tal desenvolvimento, é o fenómeno da concentração empresarial, tema de que trataremos sucintamente neste tópico, uma vez que é dele que partem as questões a serem analisadas.

    A partir do instrumental técnico peculiar à sistemática de funcionamento das sociedades anónimas e transcendendo os limites dados pelo direito societário a partir de uma gradual complexificação e especialização, mecanismos que não cabe aqui analisar, acabaram por surgir os chamados grupos societários ou, conforme uma terminologia mais atual, os grupos de empresas.4 Tais

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    estruturas, ao suplantar as antigas formas e padrões de organização empresarial, passaram a ameaçar a perpetuação de muitos dos princípios garantidores da segurança e da certeza tão prezadas na vida negociai.

  2. Com efeito, a existência dos grupos empresariais passa a exigir mecanismos de tutela dos direitos dos grupos sociais minoritários (não-controladores), dos credores de qualquer natureza (inclusive fiscal) e do consumidor, ameaçados por novos riscos, decorrentes da falta de transparência e dos múltiplos "vasos comunicantes" que geralmente caracterizam tais grupos (Comparato, 1978:196; Broseta Pont, 391 e ss.) e pela possibilidade de abuso do poder económico por parte dos mesmos, que coloca em risco as estruturas de mercado de modo geral.

    Para a efetiva formulação de tais padrões de controle é necessário que o conceito legal de grupo englobe as múltiplas facetas do fenómeno da concentração económica, abrangendo tanto os grupos de direito como os chamados grupos de fato. De acordo com essa distinção, os grupos de direito são aqueles em que há um vínculo contratual entre as sociedades participantes. Já nos grupos de fato inexiste relação contratual, estando as sociedades vinculadas por participações societárias, acordos parassociais, contratos interempresariais, uniões pessoais ou relações económicas fáticas de dependência (Engrácia Antunes, 1993:45).5

  3. A Lei 6.404, de 15.12.1976, ao disciplinar a matéria, regulou tanto o funcionamento dos grupos de direito (de subordinação em seu Capítulo XXI e de coordenação, ou consórcios, em seu Capítulo XXII) como o dos grupos de fato (no Capítulo XX, que trata das sociedades coligadas, controladoras e controladas).6 Na prática, tanto os grupos de direito propriamente ditos como os consórcios restaram ou relativamente esquecidos ou com aplicações bastante restritas. A imensa maioria dos grupos existentes no Brasil é formada por grupos de fato.

  4. Uma das primeiras questões que se impõem quando da consideração do regime legal dos grupos de sociedades diz respeito à sua aplicabilidade às sociedades por quotas de responsabilidade limitada, uma vez que estas têm grande relevância no modelo brasileiro como forma organizativa não apenas da pequena e média empresa, mas também das empresas de maior porte.7 A despeito desta importância, a questão

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    vem sendo deixada de lado pela grande maioria dos autores. A ela voltaremos mais adiante.

IV - As participações societárias recíprocas
  1. Dentre os mecanismos estabelecidos pela legislação brasileira para o regramento das atividades dos chamados grupos societários de fato (ainda que estes não sejam expressamente nomeados desta forma pela Lei das S.A.) encontra-se a vedação às participações societárias recíprocas, constante do art. 244 e §§ da Lei 6.404/76. Devido à relevância da matéria, regimes mais ou menos similares são ado-tados por praticamente todas as legislações destinadas à regulamentação dos grupos (Engrácia Antunes, 308 e ss.; Galgano, 1981:690; Broseta Pont, 1994:395; e Had-den, 1972:296 e ss.), com maior ou menor rigidez.

    O art. 244 veda expressamente a "participação recíproca entre a companhia e suas coligadas e controladas", estabelecendo, ainda, os limites da aplicabilidade desta vedação, as condições excepcionais em que pode ocorrer a participação recíproca e os efeitos decorrentes da aquisição de participação recíproca decorrente de incorporação, fusão ou cisão ou em descumprimen-to da disposição legal.8

  2. As restrições à aquisição de participações cruzadas, pela sua natureza (ou seja, já aqui tendo em vista as suas funções), apóiam-se sobre os mesmos fundamentos que justificam as restrições à negociação, pelas sociedades anónimas, com as suas próprias ações (contidas no art. 30 e §§ da Lei 6.404/76 e, na legislação anterior, no art. 15 do Decreto-lei 2.627, de 26.9.1940).

    Como esclarecido pela imensa maioria dos autores que tiveram por objeto o estudo da questão, tais fundamentos dizem respeito a dois princípios fundamentais do direito societário, quais sejam: o princípio da integridade do capital social e o princípio da soberania e não-falseamento das decisões assembleares, ameaçados tanto quando há participação recíproca como quando a companhia adquire as suas próprias ações, tornando-se sócia de si mesma. Os fundamentos da tutela atribuída a tais princípios serão melhor analisadas mais abaixo.

    Por hora é importante frisar apenas que foi justamente com base na defesa destes princípios que, mesmo antes de promulgada a Lei 6.404/76 (portanto ainda sob a égide do Decreto-lei 2.627/40), embora ainda não expressamente vedadas as participações recíprocas, alguns autores já consideravam que as mesmas eram impedidas,

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    tendo em vista os riscos delas provenientes (Ascarelli, 1969:491).9

  3. Resta saber, por força dos questio-namentos já acima referidos, quanto à aplicabilidade do citado art. 244 aos grupos societários integrados por sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Ora, pela amplitude de seu uso no Brasil afigura-se inevitável que haja uma tendência para a criação de vínculos...

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