Necessidade de repensar a competência recursal do Supremo Tribunal Federal

AutorLiliane María Busato Batista
CargoProcuradora-chefe do Banco Central do Brasil Mestre em Direito e doutoranda em Direito Econômico e Social, Professora de Direito Processual Civil da PUC/PR
Páginas5-12

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A Emenda Constitucional nº 45/04 acrescentou ao artigo 5º da Constituição Federal o inciso LXXVIII, o qual preceitua que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Tal dispositivo está em consonância com o que a doutrina já lecionava há tempos, no sentido de que o direito de ação engendra uma tutela jurisdicional tempestiva e efetiva.

Segundo Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart,

“a doutrina moderna abandonou a idéia de que o direito de acesso à justiça, ou o direito de ação, significava apenas direito à sentença de mérito. Esse modo de ver o processo, se um dia foi importante para a concepção de um direito de ação independente do direito material, não se coaduna com as novas preocupações que estão nos estudos dos processualistas ligados ao tema da ‘efetividade do processo’, que traz em si a superação da ilusão de que este poderia ser estudado de maneira neutra e distante da realidade social e do direito material.”1

Nessa toada, levando em consideração a possibilidade das partes recorrerem das decisões proferidas na seara judicial, é preciso atentar para a necessidade de distribuição do ônus do tempo do processo2.

Conforme ensina Egas Dirceu Moniz de Aragão, “os recursos são indispensáveis à realização do Direito pelo Processo e à consecução da Justiça”3. Mais adiante, o autor ressalta que “isso não significa que devam estar concebidos nos mesmos termos, com extensão e intensidade iguais à que nosso ordenamento jurídico lhes atribui”4.

No tocante ao Supremo Tribunal Federal, podese dizer que, atualmente, a demanda recursal de tal Corte atingiu seu “ponto máximo de saturação
(...) fazendo com que aqueles que realmente demandam um posicionamento fiquem anos à espera de um resultado”5.

As razões apontadas para tal acúmulo de processos são várias. A título exemplificativo, dirseia que, por um lado, constatase uma evidente desproporção entre o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e o volume de processos a serem julgados6. Em outras palavras, afirmase que a “crise do STF tem a razão evidente de que onze ministros não são capazes de absorver a colossal quantidade de processos e recursos que anualmente ali são distribuídos”7.

De outra parte, relegase aos advogados a implementação de uma verdadeira cultura recursal, “uma vez que compele o advogado a desenvolver uma mentalidade de sempre recorrer, por temer não realizar o trabalho mais adequado e completo ao seu cliente”8. Soma-se a isso, criando um cenário ainda mais caótico, a corriqueira interposição de recursos por vezes protelatórios.

No entanto, o fato9 é que “o acesso demasiadamente aberto às Cortes Superiores acarreta acúmulo absurdo dos processos a serem julgados, inviabilizando uma prestação jurisdicional adequada e condizente com a importância desses Tribunais”10 11.

Logo, “parece indiscutível que algum tipo de controle, filtro ou triagem há de existir para o acesso às Cortes Superiores, (...) a fim de impedir a transformação dessas Cortes naquilo que não são nem devem ser: terceira instância”12.

É nesse contexto que emergem os chamados filtros recursais. Como assevera Sandro Marcelo Kozikoski, “ao longo da história diversos mecanismos foram contemplados para minimizar a (sobre)carga de trabalho do STF, idealizados com o propósito de diminuir a quantidade ou elitizar a natureza dos processos encaminhados à instância extraordinária”13.

Ocorre que, no afã de assegurar a duração razoável do processo, foram paulatinamente acrescentados cada vez mais obstáculos com o intuito de restringir ao máximo a quantidade de recursos conhecidos (e, consequentemente, de mérito apreciado).

A referida preocupação foi ainda maior no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte brasileira. Isso porque, de acordo com estatísticas recentes divulgadas pelo próprio Tribunal, o volume de processos seria de tal monta que – em 2008 – pouco mais de meros 19,2% do volume total de processos protocolados nesse ano teriam sido julgados e publicados14.

Em 1998, a Lei 9.756 objetivou restringir o cabimento do Recurso Extraordinário. Assim, foram idealizados os seguintes mecanismos:

“(i) a interposição do recurso extraordinário na modalidade retida (para agravos de decisões proferidas nos processos de conhecimento, Page 6 cautelar, ou de embargos à execução, nova redação do art. 542, § 3º, do CPC); (ii) com a ampliação dos poderes do Relator, o qual, estando o acórdão recorrido “em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal Superior” fica autorizado a conhecer do agravo para dar provimento ao próprio recurso especial/ extraordinário, poderá, ainda, se o instrumento contiver os elementos necessários ao julgamento do mérito, determinar sua conversão, observandose, daí em diante, o procedimento relativo ao recurso especial/ extraordinário (§ 3º, do art. 544, CPC).”15

Conforme ensina André Brawerman, também haveria os seguintes filtros em relação ao Recurso Extraordinário:

“(i) pré-questionamento da matéria constitucional (Súmula 282 STF); (ii) violação frontal à CF, e não reflexa (Súmula 636 do STF); (iii) recurso em confronto com a jurisprudência precedente da Corte (Súmula 286 do STF); (iv) interpretação razoável ao Direito (Súmula 400 do STF); (v) deficiência de fundamentação (Súmula 284 e Súmula 287 do STF), (vi) deficiência no traslado do agravo denegatório de recurso extraordinário, inclusive de peças não obrigatórias (Súmula 288 do STF), dentre outras tantas súmulas e jurisprudências existentes que inviabilizam a apreciação dos recursos aos Tribunais Superiores.”16

Vale dizer que, ao lado dos filtros já citados, emerge também a chamada repercussão geral (artigo 102, § 3º, da Constituição Federal). Procederse-á, a seguir, à análise dos referidos filtros recursais.

1.1. Prequestionamento

Seguindo a análise dos pressupostos de admissibilidade do Recurso Extraordinário, passase a examinar o requisito do prequestionamento.

A necessidade de existência de tal filtro para cabimento do Recurso Extraordinário se infere da leitura do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal, segundo o qual cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar “as causas decididas em única ou última instância”.

Em que pese, em um primeiro momento, a definição de prequestionamento possa parecer pacífica, em realidade, observase que se trata de tema polêmico. Assim, a fim de delimitar o exato alcance do filtro recursal em análise, impende abordar as principais divergências em torno do prequestionamento17. A primeira delas diz respeito à necessidade de interposição de embargos de declaração, caso a decisão recorrida não tenha enfrentado a questão constitucional. Entende o Supremo Tribunal Federal18 que, mesmo que os embargos não sejam julgados procedentes, sua mera interposição já supre o requisito de prequestionamento (conforme a Súmula nº 356 do STF19).

Destarte, ressaltase que somente podem ser objeto de embargos de declaração questões já debatidas, ventiladas nos autos.

Outra discussão que demandou pronunciamento da Corte foi acerca da existência de prequestionamento, no caso da questão constitucional ter sido discutida em voto vencido. Sobre essa situação, a mais alta Corte brasileira entendeu que “Não se terá como prequestionada a questão somente analisada em voto vencido no arresto recorrido, sem que a parte tenha interposto embargos de declaração para vê-la discutida perante o tribunal de origem”20.

Pelas peculiaridades apresentadas, constatase que o tema prequestionamento, apesar de ter sido criado com a intenção de diminuir o volume de recursos no Supremo Tribunal Federal, acabou, ele próprio, exigindo diversos pronunciamentos dessa Corte para esclarecer seu sentido e limites.

E, no intuito de proteger os jurisdicionados de tais opiniões contrapostas, Teresa Arruda Alvim Wambier propõe a adoção da fungibilidade de entendimentos entre os tribunais superiores21. Contudo, bem adverte Sandalo Bueno do Nascimento Filho que

“(...) esta solução não seria necessária se a função uniformizadora das Cortes Superiores realmente estivesse se operando. Quando não se pode exigir, por absoluta impossibilidade prática, um pronunciamento definitivo e uniforme sobre cada questão federal alegada em cada um dos milhares de recursos extraordinários e especiais, é perfeitamente exigível um posicionamento definitivo e uniformizado, pelo menos acerca dos requisitos de admissibilidade desses recursos.”22

De fato, podese inferir que, quando não há concordância entre os tribunais superiores acerca da definição de um filtro recursal, o que se conclui é que tal requisito não está cumprindo satisfatoriamente a função para a qual foi estabelecido.

1.2. Súmula vinculante

Uma das mais polêmicas inovações trazidas pela Emenda Constitucional n° 45 de 2004 foi a introdução no ordenamento jurídico brasileiro das chamadas “súmulas vinculantes”.

De início, impende esclarecer que a nomenclatura “súmulas vinculantes” não é a mais apropriada, haja vista que a palavra súmula, por definição, consiste no “conjunto das teses jurídicas reveladoras da jurisprudência reiterada e predominante no tribunal e vem traduzida em forma de verbetes sintéticos numerados e editados”23. Logo, mais correto seria falar em enunciados vinculantes, cujo conjunto seria uma súmula vinculante. Todavia, o uso já consagrado pela doutrina e jurisprudência faz com que seja adequado falar em súmula como sinônimo de enunciado.

A competência para a edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante é exclusiva do Supremo...

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