Requisitos para aplicação da frustração do fim do contrato

AutorMaria Proença Marinho
Páginas59-96
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REQUISITOS PARA APLICAÇÃO DA
FRUSTRAÇÃO DO FIM DO CONTRATO
Fixados os contornos teóricos do instituto da frustração do
f‌im do contrato, cumpre investigar quais são os requisitos e pres-
supostos para a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro,
matéria que será abordada no presente capítulo.148 Registre-se, no
entanto, que o instituto objeto deste estudo tem aplicação residual,
de modo que não será aplicável caso a f‌inalidade se torne inatingível,
mas a hipótese concreta se enquadre na disciplina legal de outras
f‌iguras jurídicas.149
2.1 ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA FRUSTRAÇÃO DO FIM DO
CONTRATO
De início, impõe-se delimitar o âmbito de aplicação da frustra-
ção do f‌im do contrato, isto é, que contratos este remédio poderá
tutelar. Nesse ponto, exige-se que o contrato em questão seja exis-
148. Embora não se desconheça a classif‌icação explorada por alguns autores, este trabalho
não distinguirá entre pressupostos e requisitos. Sobre a distinção, conf‌ira-se: GOMES,
Orlando. Contratos. 12 Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 45-46.
149. Por exemplo, o inadimplemento absoluto, em última instância conduz à impossibilidade
de se alcançar o f‌im do contrato. Isso, contudo, não atrai a incidência da doutrina da
frustração do f‌im do contrato. Com efeito, “as situações que já se encaixam em outras
f‌iguras ou institutos jurídicos, possuindo disciplina legal predeterminada, mas que, ao
mesmo tempo, podem ser enquadradas na frustração da f‌inalidade do contrato, devem
permanecer reguladas pelas regras já existentes, por já fazerem parte da cultura jurídica
e, também, por não serem legítimos casos de frustração. Para f‌ins didáticos, podemos
segmentá-las como hipóteses de frustração do f‌im do contrato lato sensu, enquanto a
real, a técnica e a verdadeira frustração do contrato pode ser denominada frustração do
f‌im do contrato stricto sensu.” (COGO, Rodrigo Barreto. A frustração do f‌im do contrato.
Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 240).
FRUSTRAÇÃO DO FIM DO CONTRATO • MARIA PROENÇA MARINHO
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tente e válido,150 tendo em vista que, conforme leciona Junqueira de
Azevedo, este instituto atua no plano da ef‌icácia.151 152
Ademais, af‌irma-se, de forma geral, que o cenário mais comum
de aplicação da frustração do f‌im do contrato é o contrato bilate-
ral, oneroso, comutativo e de execução diferida ou continuada.153
Todavia, embora este fenômeno realmente se apresente com maior
frequência nesses casos, cumpre investigar se há ou não limites efe-
tivos para a sua aplicação.
Como se sabe, todo contrato é ato jurídico bilateral, vez que a
sua formação depende da conjunção de duas ou mais declarações de
vontade. Não obstante, o contrato em si poderá ser bilateral – quando
os contratantes se obrigam reciprocamente uns em face dos outros –
ou unilateral – quando uma parte se obriga em face de outra, sem que
haja obrigação recíproca da contraparte.154 Vale registrar, no entanto,
que não basta a existência de obrigações recíprocas para caracterizar
a bilateralidade do contrato, impondo-se que haja “relação de cor-
150. STIGLITZ, Rubén. Objeto, causa y frustración del contrato. Buenos Aires: Depalma, 1992.
p. 24. Todavia, considerando que o negócio inválido produz efeitos até a sua anulação,
seria possível cogitar da possibilidade de aplicação da doutrina da frustração do f‌im do
contrato na hipótese de que a f‌inalidade se torne inalcançável neste lapso, isto é, entre
a formação do contrato e a sua anulação.
151. “(...) b) quando há frustração do f‌im do negócio. A consequência, em todas as hipóteses,
é a inef‌icácia, com a ressalva de que, no desaparecimento da relação de equivalência,
deve-se admitir sua restauração, mediante proposta da parte.” (AZEVEDO, Antônio
Junqueira de. Remissão interessada de dívida. Erro sobre o motivo determinante. Análise
do negócio jurídico por suas bases subjetiva e objetiva. Frustração do f‌im do negócio
jurídico e consequente enriquecimento sem causa. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira
de. Novos ensaios e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 57).
152. Para análise detalhada dos planos da existência, validade e ef‌icácia, conf‌ira-se: AZE-
VEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e ef‌icácia. 4 Ed. São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 23-71.
153. “O contrato, como regra geral para a possível aplicação da teoria da frustração do f‌im,
deve ser bilateral, oneroso, comutativo, e, ainda, de execução diferida (razoavelmente
diferida) ou trato de execução continuada.”
Tradução livre de: “El contrato, como regla general para la posible aplicación de la teoría de
la frustración del f‌in, ha de ser bilateral, oneroso, conmutativo, y además o bien de ejecución
diferida (razonablemente diferida), o de tracto o ejecución continuada.” (SANZ, Vicente
Espert. La frustración del f‌in del contrato. Madri: Editorial Tecnos, 1968. p. 169).
154. Não se desconhece as inúmeras controvérsias que circundam tal classif‌icação. Sobre
o tema, conf‌ira-se: MORAES, Maria Celina Bodin de. O procedimento de qualif‌icação
dos contratos e a dupla conf‌iguração do mútuo no direito civil brasileiro. In: Revista
Forense, v. 309, 1990. p. 33-61.
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2 • REqUISITOS PARA APLICAÇÃO DA FRUSTRAÇÃO DO FIM DO CONTRATO
respectividade entre estas, de molde que uma obrigação seja a razão
jurídica da outra, conf‌igurando-se, assim, o sinalagma”.155
Desse modo, “nos contratos bilaterais as duas partes ocupam,
simultaneamente, a dupla posição de credor e devedor. Cada qual tem
direitos e obrigações. À obrigação de uma corresponde o direito da
outra”.156 É o caso, por exemplo, dos contratos de compra e venda e
locação. Já nos contratos unilaterais, “uma das partes tem a condição
de credor e a outra de devedor. Um dos contratantes tem direitos, o
outro obrigações”,157 como ocorre no comodato, mútuo e mandato.
Os contratos bilaterais conf‌iguram campo mais propício para
a ocorrência da frustração do f‌im do contrato, na medida em que há
prestações recíprocas, que devem ser cumpridas de parte a parte. Essa
concatenação de mútuos desejos, como anota Espert-Sanz, é terreno
fértil para a ocorrência do fenômeno.158 Af‌inal, nesses casos é mais
provável que surja controvérsia invocada pela parte não prejudicada
pela frustração, que pretende exigir o cumprimento de “prestação a
que, em tese, faz jus, mas que, em decorrência de fato superveniente,
é objeto de um contrato cujo sentido se perdeu”.159
155. TEPEDINO, Gustavo. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord). Comentários ao
novo Código Civil, v. X. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. p. 33.
156. GOMES, Orlando. Contratos. 12 Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 77.
157. GOMES, Orlando. Contratos. 12 Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 77.
158. Esta concatenação de mútuos desejos, este prometo para conseguir, este me obrigo
para conquistar, porque se não, nem me obrigaria nem prometeria, é o calcanhar de
Aquiles, a brecha através da qual se mostrará uma certa debilidade intrínseca à bilate-
ralidade. É dizer, se, ainda permanecendo possíveis as mútuas prestações, uma delas
perde sentido, perde utilidade, deixa de ter interesse para o credor da mesma, não
estaríamos autorizados a pensar que essa correlatividade se debilitou em sua própria
natureza intrínseca? Não poderíamos supor que o laço que as une perdeu sua solidez?
(...)”
Tradução livre de: “Esta concatenación de mutuos deseos, este prometo para conseguir, este
me obligo para lograr, porque si no, ni me obligaría ni prometería, es el talón de Aquiles, la
brecha a través de la que va a mostrarse una cierta debilidad intrínseca a la bilateralidad.
Es decir, si, aun permaneciendo posibles las mutuas prestaciones, una de ellas pierde sentido,
pierde utilidad, deja de tener interés para el acreedor de la misma, ¿no estaríamos autori-
zados a pensar que esa correlatividad se ha debilitado en su misma naturaleza intrínseca?
¿No podríamos suponer que el lazo que las une ha perdido su solidez? (…)” SANZ, Vicente
Espert. La frustración del f‌in del contrato. Madri: Editorial Tecnos, 1968. p. 170.
159. COGO, Rodrigo Barreto. A frustração do f‌im do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
p. 198.

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