Saúde: A judicialização do direito à saúde

AutorLuiz Antônio de Freitas de Almeida
CargoPromotor de justiça do Mato Grosso do Sul
Páginas130-149
130 REVISTA BONIJURIS I ANO 32 I EDIÇÃO 667 I DEZ20/JAN21
DOUTRINA JURÍDICA
Luiz Antônio Freitas de Almeida PROMOTOR DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO DO SUL
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À
SAÚDE
I
O USO ADEQUADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, COM
AS DEVIDAS ADAPTAÇÕES, PERMITE AVALIAR DEVERES POSITIVOS
E A PROTEÇÃO INSUFICIENTE
Constitucionalizar direitos sociais é uma
decisão eminentemente política. Con-
tudo, sua adoção traz reflexos jurídicos,
mormente se os direitos forem positiva-
dos como direitos fundamentais.
No Brasil, como em outras latitudes, há am-
pliação da judicialização dos direitos sociais,
particularmente do direito à saúde, a ponto de
impactar os orçamentos dos entes federados em
montantes robustos e crescentes com despesas.
A indagação óbvia e emergente desse panorama
são os limites do Poder Judiciário para não des-
bordar de sua competência e interferir de modo
indevido e iníquo na distribuição de recursos
e na formulação de políticas públicas, uma vez
que não tem legitimação democrática pela sub-
missão de seus membros a escrutínio popular.
Nesse aspecto, um dos pontos mais comple-
xos e disputados na judicialização do direito à
saúde é a imposição de decisões judiciais que
obriguem o Estado a fornecer bens e serviços
não previstos no sistema único de saúde ().
Nesse vértice, enquadram-se dois recursos ex-
traordinários ainda pendentes de julgamento
no Supremo Tribunal Federal, cujo desfecho
terá notória influência na estipulação de limi-
tes e critérios para a judicialização do direito à
saúde, conquanto ambos se restrinjam apenas
a medicamentos: RE 566.471/ e RE 657.718/.
1. DIREITO À SAÚDE? UM CONCEITO DE
SAÚDE JURIDICAMENTE OPERATIVO
Debater o direito à saúde não prescinde de con-
ceituar o que seja saúde, tarefa que conclamaria
a lente de muitas ciências e disciplinas: medi-
cina, filosofia, economia, entre outras. Isso de-
monstra a complexidade da empreitada.
Justamente por essa complexidade, Toebes
reputa dispensável uma definição de saúde1.
Sem embargo, defende-se a utilidade dessa ta-
refa justamente pelo auxílio na interpretação e
resolução de conflitos normativos do direito em
tela, a par de que definir um mínimo de prote-
ção do direito à saúde demanda uma noção su-
mária do que seja saúde2, inclusive para definir
os limites das responsabilidades pessoal, social
e estatal em matéria de saúde.
A saúde pode ser definida de forma negativa,
como negação de um estado de doença. No en-
tanto, é possível que seja conceituada positiva-
mente, como fez a Organização Mundial de Saú-
de (), cuja constituição, em seu preâmbulo,
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estipula que a saúde é o estado de bem-estar
sico, mental e social mais completo3.
Ambas as formas de definir a saúde podem
ser criticadas. Uma concepção negativa pade-
ce de uma visão reducionista, porque aparenta
desconhecer os impactos na saúde de fatores e
condições sociais, centrando a atenção em um
modelo curativo de saúde, sem ocupar-se, ou
ocupando-se muito lateralmente, dos aspectos
de prevenção e promoção4. Por outro lado, um
conceito tão amplo de saúde traz o grave in-
conveniente de não objetivar as necessidades
em saúde, de modo a configurá-la muito subje-
tivamente, quase a mesclar-se com uma fluida
noção de felicidade, o que potencializa a viabi-
lização de demandas crescentes e inesgotáveis5.
Uma proposta racionalizadora é a apresen-
tada por Norman Daniels, que estipula um con-
ceito segundo o qual a dependência da saúde
de algumas condicionantes sociais é antecipa-
damente percebida, o que o afasta da definição
negativa. Contudo, o conceito de saúde não é
tão amplo como o dado pela , de modo que
serve para objetivar algumas das necessidades
de saúde e, dessa forma, impedir o inconvenien-
te de não ter operatividade jurídica. Como se
percebe, mesmo que o conceito positivo da 
permita ultrapassar a estreita óptica de pensar
a saúde somente como distribuição de cuidados
sanitários, é fato que essa definição amplíssima
pode balizar pressões para a extensão da cober-
tura sanitária de modo ilimitado. As despesas
em saúde são crescentes e potencialmente ines-
gotáveis, de sorte que todo o sistema sanitário
que pretenda ser universal deve racionalizar e
racionar seus custos. Afinal, existem os fatores
progressivos de envelhecimento populacional
e de avanços na ciência na disponibilização de
novas tecnologias em saúde, as quais nem sem-
pre são acompanhadas de uma proporção no
benecio clínico oferecido em relação ao custo
acrescido frente aos tratamentos já disponíveis.
De outro lado, em um panorama de “biopoder”
e de “biossocialidade”, com formação de “bioci-
dadãos”, existem movimentos de mobilização
da opinião pública e dos aparatos distributivos
no intuito de reconhecer as condições pessoais
desfavoráveis como novas formas de doenças e,
por conseguinte, de buscar novas tecnologias
para satisfazer esses interesses6.
Nesse prisma, sugere-se o conceito de saúde
de Norman Daniels como juridicamente operati-
vo. Daniels trabalha sua teoria com muita apro-
ximação da teoria da justiça de Rawls, porém
não inclui a saúde como bem primário. Em vez
disso, Daniels percebe a saúde como riqueza es-
sencial para garantir a justa igualdade de opor-
tunidades, com uma adaptação da teoria rawl-
siana na finalidade de acrescentá-la dentro desse
princípio7. As práticas sociais podem propiciar
desigualdades que necessitam ser enfrentadas
mediante justa igualdade de oportunidades, não
bastando igualdade formal de oportunidades no
acesso a cargos e empregos públicos, como pre-
conizado por Rawls8. Logo, cuidados sanitários
contribuem de modo significativo, embora limi-
tadamente, para garantir igualdade de oportuni-
dades equitativa, tendo em vista que essas desi-
gualdades são corrigidas de modo a propiciar o
“funcionamento normal” das pessoas9.
Dessarte, a saúde traduz-se no estado psi-
cossomático que permita a ação e a vivência da
pessoa dentro de um padrão básico de funcio-
nalidade do corpo humano, o qual é dependente
de fatores e condições sociais. Daniels concebe
dentro das necessidades sanitárias algumas
condicionantes como a nutrição, moradia ade-
quada e salubre, serviços de natureza não mé-
dica, exercício, descanso e outras características
de uma vida saudável, além de serviços médicos
preventivos, curativos e reabilitadores10. Com
isso, há um contributo de objetivação das ne-
cessidades de saúde que as separa da vontade
ou desejo individual, tendo em vista que elas
podem ser enunciadas, ao menos no seu âmbito
nuclear, tendo em conta a perspectiva de nor-
Debater o direito à saúde não prescinde de conceituar o que
seja saúde, tarefa que conclamaria a lente de muitas ciências e
disciplinas. Isso demonstra a complexidade da empreitada

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