A segregação do corpo travesti no cistema prisional brasileiro: comentários à Medida Cautelar na ADPF 527/The segregation of the transvestite body in the Brazilian prison cistem: comments on the preliminary injunction in ADPF 527.

AutorLima, Francielle Elisabet Nogueira

Ela é tão singular

Só se contenta com plurais

Ela não quer pau

Ela quer paz

(...)

É sempre uma mulher?

Ela tem cara de mulher

Ela tem corpo de mulher

Ela tem jeito

Tem bunda

Tem peito

E o pau de mulher!

(Linn da Quebrada, Mulher)

A ausência ou a imprecisão de dados acerca da população LGBTI+ (1) no cistema (2) prisional contribui para o apagamento tanto do debate, particularmente no cenário jurÃÂdico, quanto da construção e implementação de uma polÃÂtica pública penitenciária que inclua esse grupo de pessoas. No campo da pesquisa, a questão prisional e esse grupo inclui muitos trabalhos sobre a experiência de pessoas trans e travestis com o cárcere, cena em que aparece a questão da existência ou não das alas e da própria demanda acerca de espaços destacados (NASCIMENTO, 2020). No campo da polÃÂtica pública, esses espaços ou alas teriam começado a surgir como projeto piloto em Minas Gerais, na Unidade Joaquim de Bicas II, em 2009, depois no Centro de Ressocialização de Cuiabá, em 2011, o PresÃÂdio Central de Porto Alegre (RS) em 2012, o PresÃÂdio do Roger, a Penitenciária Dr. Romeu Gonçalves de Abrantes e a Penitenciária Regional Raimundo Asfora (PB), em 2013 (SESTOKAS, 2015; FRÓIS; VALENTIM, 2017; NASCIMENTO, 2020).

O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, responsável pela coleta, compilação e divulgação de dados da população em situação de prisão no Brasil, levantou--no ano de 2020--a existência de 10.547 pessoas presas que se autodeclararam LGBTI+. O informe reunia dados de 23 estados e do Distrito Federal. (3) Um dos objetivos, segundo o próprio DEPEN, é que os dados visam a permitir a elaboração de uma polÃÂtica pública para esse grupo. A questão do local de permanência dessas pessoas quando em situação de prisão ganha evidência.

Da mesma forma, no ano de 2020, foi publicado o primeiro levantamento penitenciário sobre esse grupo: "LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento", produzido pelo Ministério da Mulher, FamÃÂlia e Direitos Humanos (BRASIL, 2020). Das 1499 unidades prisionais instadas a responder o questionário encaminhado on-line, apenas 508 responderam, e, dentre essas somente 106 unidades (todas masculinas) responderam dispor de um espaço para a custódia de homens cisgêneros homossexuais, bissexuais, travestis, mulheres trans e homens transgênero cis que com esse grupo mantém relações afetivo-sexuais (BRASIL, 2020, p. 16-17).

A falta, todavia, de uma polÃÂtica pública estabelecida para essa matéria, levou àjudicialização do tema pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais--ABGLT, com a proposição de uma Ação de Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF), autuada junto ao Supremo Tribunal Federal sob n. 527.

O presente trabalho se consubstancia em uma análise das decisões proferidas entre 2019 e 2021, a respeito do local de cumprimento de pena, no âmbito da medida cautelar na ADPF 527 (4), notadamente em vista de interpretações restritivas lançadas sobre corpos travestis, quadro similar ao da Resolução 01/2014, do Conselho Nacional de PolÃÂtica Criminal e Penitenciária (CNPCP) e Conselho Nacional de Combate àDiscriminação (CNCD/LGBT), e das Resoluções 348/2020 e 366/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A primeira, na qual se incluiu apenas as mulheres transexuais e a segunda, ampliando para travestis, parecem ter se centrado em permanências de compreensões hegemônicas sobre travestilidade (de consequência, corpo, sexo e gênero) e diferenciado a identidade de gênero entre as travestis e as mulheres trans na presença ou não do órgão biológico que caracteriza o masculino: o falo.

O texto percorre em sua escrita três momentos: (i) o da apresentação do cistema prisional como território da exclusão, segregação e (re)produção de parâmetros normativos de gênero e sua tecnologia operacional (FOUCAULT, 1999), nas quais os paradigmas de uma colonialidade racista e de gênero (FERREIRA, 2019) são perpetuados; (ii) o do elenco normativo judicial que antecede o debate da medida cautelar na ADPF 527, em que o falo organiza o repertório jurÃÂdico; (iii) a análise crÃÂtica das decisões proferidas na cautelar, mirando especialmente as categorias que compõem o discurso jurÃÂdico e que divide, categoriza e organiza pessoas LGBTI+ na lógica prisional. Para tanto, vale-se, metodologicamente de referenciais bibliográficos, análise de decisões e normativas formuladas pelo poder público, visando a investigar em que medida isso garante direitos àpopulação trans e travesti em situação de privação de liberdade.

  1. A necropolÃÂtica masculinista das prisões: territórios de exclusão, segregação e (re) produção de parâmetros normativos de gênero

    Como alerta Jota Mombaça, espancamentos públicos, omissões médicas, espetacularizações, naturalizações de processos de morte, de exclusão social e violências cistêmicas formam parte do cotidiano de muitas pessoas trans (5), transexuais, travestis, sapatonas, bichas e outras corpas (6) e corpos dissidentes sexuais e das normas de gênero, principalmente as racializadas e empobrecidas (MOMBAÇA, 2021, p. 72). Em meio a operações de violência mortais, que se alinham em favor da heteronormatividade, da cissupremacia, do neocolonialismo, do racismo, do sexismo e da supremacia branca, estes grupos de pessoas são posicionados no ranking dos "direitos humanos dos humanos direitos" nas classificações mais baixas (MOMBAÇA, 2021, p. 73).

    No território prisional brasileiro, reconhecido formalmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelo "estado de coisas inconstitucional" (7), a operacionalidade dessas expressões de distribuição de violências antipreta, antibicha, antitrans, antimulheridades etc. também se faz presente. Afinal, as instituições prisionais não estão isoladas da sociedade, das estruturas e das relações de poder nas quais se inserem (GODOI, 2015; GARLAND, 2005; RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004; FOUCAULT, 1999). Pelo contrário, dentre os múltiplos engendramentos possÃÂveis (8), o dispositivo prisional também reifica, (re)produz e (re)codifica, com uma brutalidade transparente, a contenção, a exclusão e a aniquilação de grupos insurgentes e divergentes de um suposto modelo ideal de humanidade, evitando modificações mais profundas nas hierarquias sociais presentes, no caso brasileiro, desde a colonização (FERREIRA, 2019).

    Em outras palavras, se para além do território prisional brasileiro a governamentalidade do fazer e deixar morrer (9) é direcionada preferencialmente às pessoas que se afastam da matriz branca e cisheteronormativa, tal exercÃÂcio do poder estatal de gerenciar processos de morte, apagamentos, separação e exclusão também atravessam os muros porosos da prisão. No contexto brasileiro, cuja formação do território prisional é atravessada pelo espectro colonialista-escravagista (MBEMBE, 2018, 2017, 2014; ALMEIDA, 2018), estar sob a "tutela" estatal em unidades penais não significa estar sujeito meramente a um poder de disciplinamento da mão-de-obra fabril--como se costuma importar de leituras sobre a realidade eurocêntrica (10) - mas a um projeto necropolÃÂtico (11) (FERREIRA, 2019; FREITAS, 2016; FLAUZINA, 2006).

    Em meio àcondução do encarceramento em massa brasileiro por parte do Sistema de Justiça Criminal e Penitenciário, nunca houve a implementação efetiva e exclusiva de uma ortopedia da alma (12) de indivÃÂduos pelo isolamento, mas o gerenciamento de um amontoado de corpos desviantes, sobretudo não brancos, expostos a lugares insalubres, torturas e violências (FERREIRA, 2019, p.179). Como pode ser visto nos estudos de Ana Flauzina (2006), Evandro Piza (2002) e Marcos Cesar Alvarez (2003), a sociedade disciplinar emergiu (e ainda emerge) muito mais como parte de uma utopia fantasiosa formal dos juristas de escolas reformistas do que como uma realidade concreta e institucional.

    Se, em meio ao século XVIII e XIX, em linhas gerais, a Europa era marcada pela passagem da Monarquia para a República--o rei soberano dava lugar àsociedade enquanto corpo que precisava ser defendido--e pela substituição dos suplÃÂcios medievais e marcas corporais por métodos envoltos por práticas da psiquiatria e da criminologia, tal perÃÂodo coincidia com processos de colonização em paÃÂses localizados às margens do eurocentrismo, como é o caso do Brasil (13). Como pontua Natalia Ferreira (2019), as colônias ainda permaneciam vivendo com o uso de penas privadas de açoite e penas públicas de morte, dirigidas especialmente contra os povos negros e indÃÂgenas, demonstrando como o sistema punitivo colonial mantinha-se muito próximo do perÃÂodo inquisitorial europeu (FERREIRA, 2019, p.170).

    Ilustrativamente, ainda que na Constituição de 1824, em seu artigo 179, XXI, denotasse que "as Cadêas serão seguras, limpas, bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circunstâncias, e natureza dos seus crimes" (BRASIL, 1824), a realidade da época, analisada por trabalhos como, por exemplo, de Araújo (2017), Aguirre (2017) e Holloway (2017), demonstram como as prisões eram mobilizadas para conter a população negra e escravizada através da divisão de penalidades...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT