Sentença do Tribunal Arbitral de Conflitos de Consumo do Porto (30.05.2015)

AutorPaulo Duarte
Páginas295-310

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PROCESSO n. «««

REQUERENTE: «««

REQUERIDAS: «««

1. Relatório

1.1 a requerente, referindo que a requerida lhe solicita o "pagamento adicional" da quantia de € 425,40, que corresponderia a "alegados acertos de consumo", referentes ao período entre 27/12/2011 e 18/08/2013, devido a alegada manipulação do contador, que estaria "sem chantes", pede, impugnando o "quantitativo" exigido e invocando, de todo o modo, a prescrição da dívida de que a requerida se arroga sujeito activo, que se declare a inexistência desta.

1.2 são os seguintes os factos essenciais alegados pelo requerente:

  1. a requerente celebrou com a «««.sa, em 2011, contrato de fornecimento de energia eléctrica, para o imóvel situado na rua «««;

  1. desde essa altura, até à data de apresentação do requerimento inicial, a requerente tem procedido ao pagamento integral das facturas emitidas pela «««;

  2. com data de 19/09/2013, a requerida enviou uma carta à requerente, na qual lhe exige o "pagamento adicional de € 425,40, referente a "alegados acertos de consumo", referentes ao período entre 27/12/2011 e 18/08/2013.

1.3 a requerida apresentou contestação escrita. Alega que, por ocasião de vistoria técnica, realizada em 19/08/2013, verificou que o contador "estava desselado na tampa superior de relojoaria e na tampa de bornes", estando ainda "aberto o condutor de fase", isto é "desconectado do contador". Por causa disso, acrescenta a requerida, o contador apresentava a mesma leitura havia pelo menos 12 meses, não havendo "medição nem registo de consumos": entre 26/12/2011 e 18/09/2013, "a leitura dos consumos" manteve-se inalterada, em 40 043KWH.

Depois de afirmar a sua pretensão ao pagamento do valor correspondente aos "encargos de uso de rede", termina a requerida, pedindo, em reconvenção, que a requerente seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 425,40, acrescida de juros de mora.

2. O objecto do litígio

O objecto do litígio (ou o thema decidendum)1corporiza-se na questão de saber se assiste ou não à requerida o direito de crédito que invoca contra o requerente. Trata-se de um caso típico de uma acção de simples apreciação negativa em que o demandado pede que o autor seja condenado ao cumprimento da obrigação cuja inexistência este pretende ver declarada.

3. Admissibilidade do pedido reconvencional

Segundo o n. 4 do art. 33º da lei da arbitragem Voluntária (aplicável à arbitragem necessária por força do art. 1085º do CPC), "o demandado pode

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deduzir reconvenção, desde que o seu objecto seja abrangido pela convenção de arbitragem".

No caso dos autos, não há convenção de arbitragem, fundando-se a competência do tribunal arbitral na norma legal que impõe a "necessidade" da arbitragem. Sendo assim, a reconvenção é admissível "desde que o seu objecto seja abrangido" pela norma que determina a arbitragem. Trata-se de aplicar, no âmbito da arbitragem necessária, o mesmo "pensamento normativo" que subjaz à arbitragem voluntária: o critério determinante da admissibilidade da reconvenção é o da inclusão do seu objecto (o objecto do litígio subjacente à demanda reconvencional) no âmbito da competência do tribunal arbitral (o qual deve ser apurado por via da interpretação da norma atributiva dessa competência - seja a "norma contratual" estabelecida na convenção arbitral, no caso da arbitragem voluntária, seja a "norma legal" que imponha a arbitragem, no caso em que esta é necessária).

Segundo o n. 1 do art. 15º da lei n. 23/96, de 26/07/96, "os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados".

De acordo com o preceito, o âmbito material da competência do "tribunal arbitral necessário" circunscreve-se aos litígios que satisfaçam, cumulativa e sucessivamente, três critérios identificadores: deve, em primeiro lugar, tratar-se de litígios referentes a "serviços públicos essenciais"; importa, em segundo lugar, que sejam litígios de "consumo"; e é indispensável, por fim, que a submissão do litígio à jurisdição arbitral resulte de uma opção expressa do utente "pessoa singular".

No caso dos autos, não há nenhuma dúvida de que o objecto do litígio inerente ao pedido reconvencional satisfaz estes três critérios. Mais do que isso, pode mesmo dizer-se, dada a estrutura processual da acção (acção de simples apreciação negativa) que o objecto do litígio pressuposto no pedido principal é exactamente o mesmo que é inerente ao pedido reconvencional: o direito que a requerente nega (o direito de crédito cuja inexistência quer ver reconhecida) é aquele que a requerida afirma.

A reconvenção é, portanto, admissível2.

4. As questões de direito a solucionar

Considerando o objecto do litígio, o pedido deduzido pela requerente e a contestação da requerida, há duas questões a resolver, subsidiariamente ordenadas: a questão de saber se, admitindo a sua existência, se extinguiu, pelo decurso do tempo (prescrição ou caducidade), o direito que a requerida invoca; a questão de saber se se verificam os respectivos pressupostos constitutivos.

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5. Fundamentos da sentença

5.1 Os factos

5.1.1 Factos admitidos por acordo

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se admitidos por acordo os seguintes factos:

  1. a requerida exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta, em média e em baixa tensão (artigos 1. Do requerimento inicial e da contestação);

  1. a requerente celebrou com a «««, em Dezembro de 2011, contrato de fornecimento de energia eléctrica, para o imóvel situado na rua ««« (artigos 2 do requerimento inicial e 24 da contestação);

  2. até à data de apresentação do requerimento inicial, o requerente tem procedido ao pagamento integral das facturas emitidas pela ««« - facto alegado pelo requerente (artigo 4 do requerimento inicial) e não impugnado pela requerida.

    5.1.2 Factos provados

    Julgo provados os seguintes factos:

  3. em 19/08/2013, o contador instalado no imóvel situado na rua «««, estava desselado na tampa superior de relojoaria e na tampa de bornes, estando ainda aberto o condutor de fase, isto é desconectado do contador - facto que julgo provado com base no documento de fls 28 e nos depoimentos prestados por ««« e ««« (funcionários da empresa ««« subcontratada pela requerida), que realizaram a vistoria e elaboraram o auto correspondente (documento de fls. 36), mostrando conhecimento pormenorizado e circunstanciado dos aspectos essenciais de tal diligência;

  4. entre 26/12/2011 e 18/08/2013, o contador instalado no imóvel situado na rua «««, registou, sem qualquer alteração, o valor de 40 043KWH - facto que julgo provado com base nos documentos de fls. 7 a 10 e 39;

  5. com data de 19/09/2013, a requerida enviou uma carta à requerente, que a recebeu, na qual lhe exige o pagamento € 425,40, valor que atribui aos "prejuízos apurados", em relação a "uma acção ilícita destinada a falsear o funcionamento normal do equipamento de contagem" - facto que julgo provado com base nos documentos de fls. 4 e 5;

  6. o último período de facturação em que houve diferença entre o consumo de energia eléctrica no prédio referido em b) e o valor registado no contador terminou em 18/08/2013 - facto que julgo provado com base nos documentos de fls. 7 a 10;

  7. a requerente pagou, até ao fim de setembro de 2013, a factura referente ao período de consumo de energia eléctrica terminado em 18/08/2013 - sendo obrigatória a periodicidade mensal da facturação (art. 9º/2 da lei dos serviços públicos essenciais) e sabendo-se, da experiência quotidiana, que as facturas se vencem, em regra, dentro do mês seguinte à sua emissão e que, por outro lado, a requerente pagou todas as facturas emitidas pelo comercializador (ver lista dos factos admitidos por acordo), pode concluir-

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    -se (arts. 349º e 351º do Código Civil) que a requerente pagou a factura relativa àquele período de consumo até do fim de outubro de 2013.

    5.1.3 Factos não provados

  8. Julgo não provado o facto de ter sido a requerente a desselar o contador de energia eléctrica - facto cuja alegação, pela requerida, parece estar implícita na afirmação de que, segundo o art. 1º/2 do Decreto-lei n. 328/90, de 22 de outubro, a "prática fraudulenta" de violação do contador se "presume imputável ao consumidor" (artigo 63 da contestação). A requerida, de resto, não indicou nenhum meio de prova que tivesse tal facto por objecto. É certo que o legislador estabelece a presunção invocada pela requerida. Como acontece com qualquer presunção (art. 349º do Código Civil), a prova inferencial (por meio, precisamente, da inferência, do desconhecido a partir do conhecido, em que consiste a presunção) do facto presumido depende da prova do facto indiciário. Segundo a estrutura da norma do art. 1º/2 do Decreto-lei n. 328/90, o facto indiciário consiste na detecção do "procedimento fraudulento (...) no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica". A requerida, em bom rigor, não alegou este facto, não tendo, por isso mesmo, desenvolvido nenhuma actividade probatória destinada a demonstrá-lo. Não estando, por conseguinte, provado o facto indiciário, não pode julgar-se, por via presuntiva, provado o facto legalmente presumido.

  9. Julgo não provado o facto, alegado pela requerida, de a requerente, enquanto moradora e utilizadora da habitação (rua «««), ter usufruído e beneficiado da energia eléctrica "retirada da rede".

    Os depoimentos da representante da requerente («««) e da testemunha ««« (filha da requerente) - depoimentos consistentes e espontâneos (e coincidentes) -...

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