A nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor solvente à luz dos direitos fundamentais

AutorDirceu Pereira Siqueira; Claudinei Jacob Göttens; Rodrigo Lanzi de Moraes Borges
Páginas2-24

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Introdução

Após as reformas introduzidas em nosso Código de Processo Civil, o legislador ordinário, ancorado nas normas que regem os direitos e garantias constitucionais, mais especificamente à luz dos princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e da razoável duração do processo judicial dispostos nos incs. XXXV e LVXXIII do Art. 5º da Constituição Federal, realizou diversas modificações no sistema da execução civil, em especial, na modalidade por quantia certa contra devedor solvente - a qual, se crê tem se revelado o calcanhar de Aquiles1234 do sistema processual brasileiro.

Essa modalidade de execução, em razão de ser calçada em um procedimento arcaico e moroso, não contendo mecanismos adequados para a concretização do direito material das partes e, ainda, em razão da deficiência tecnológica dos órgãos judiciais e da escassez de magistrados e funcionários capacitados, somados ao descrédito do Poder Judiciário perante a população em geral, tornou-se protagonista de uma enorme crise5/6. Page 3

No intuito de minimizar ou, quiçá, fazer cessar essa crise da execução, o legislador ordinário iniciou seu trabalho com a elaboração das Leis 11.232/05 e 11.382/06, que alteraram, respectivamente, a execução por quantia certa fundada em título judicial e a execução civil fundada em título extrajudicial, inovações essas que, resumidamente, buscaremos analisar ao longo desse trabalho em razão do seu escopo.

1 Direitos fundamentais: princípios e regras Breve análise sobre os princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e da razoável duração do processo

Os direitos fundamentais constituem elementos fundantes da Constituição, os quais surgiram para regular não somente o Texto Maior, mas também todo o sistema normativo de um país, sempre tendo como alicerce o cumprimento dos princípios fundamentais expressos em seus Arts. 1º a 4º, em especial, no que se refere ao cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana.

Os direitos fundamentais não se restringem aos catalogados no Título II da Constituição, mas é extensível a todos aqueles cujas características intrínsecas os coloquem dentro da categoria da fundamentalidade como, por exemplo, a norma descrita no Art. 150, inc. III, alínea 'a' da Constituição Federal, que disciplina o denominado "princípio" da anterioridade tributária.

Dentre as características principais dos direitos fundamentais, pode-se enaltecer o fato de possuírem, em sua maioria, uma alta carga de eficácia, com a previsão, inclusive, de aplicabilidade imediata e vinculação direta dos entes públicos (Art. 5º, § 1º, da Constituição Federal), bem como pelo fato de ser impossível de serem abolidos pelo constituinte derivado (Art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição Federal de 1988), o que os diferencia das demais normas constitucionais.

Essa aplicabilidade imediata das normas de direito fundamental possui o condão de vincular de forma direta o poder público na sua concretização, seja na criação de leis, Page 4 na aplicação ao caso concreto pelo magistrado ou pelos próprios responsáveis pela administração pública.

Com a implantação dessa aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais nos textos constitucionais que foi, definitivamente, reconhecido o seu caráter normativo, superando aquela antiga concepção de que as normas constitucionais dependiam da criação de leis ordinárias para serem eficazes.

A doutrina, ancorada na concepção tradicional, utiliza diversos critérios para distinguir as normas de direito fundamentais em princípios e regras, como, por exemplo, o da abstração, da fundamentalidade, da hierarquia, da generalidade dentre outros.

Lucia Valle Figueiredo, por exemplo, ensina-nos que os princípios são: "[...] normas gerais, abstratas, não necessariamente positivadas expressamente, porém às quais todo ordenamento jurídico, que se construa, com a finalidade de ser um Estado Democrático de Direito, em sentido material deve respeito".7

No mesmo sentido, Roque Antonio Carrazza, para quem:

Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam 8 .

Paulo Henrique dos Santos Lucon, porém, nos ensina que:

[...] nas ciências jurídicas, os princípios tem a grande responsabilidade de organizar o sistema e atuar como elo de ligação de todo o conhecimento jurídico com finalidade de atingir resultados eleitos; por isso, são também normas jurídicas, mas de natureza anterior e hierarquicamente superior as 'normas comuns' (ou de 'normas não principais') 9 .

Marcelo Harger conceitua os princípios como sendo:

[...] normas positivadas ou implícitas no ordenamento jurídico, com um grau de generalidade e abstração elevado e que, em virtude disso, não possuem hipóteses de aplicação pré-determinadas, embora exerçam um papel de preponderância em relação às demais regras, que não podem contrariá-los, por serem as vigas mestras do ordenamento jurídico e representarem os valores positivados fundamentais da sociedade10. Page 5

Vide, ainda, a definição de princípio realizada por Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, para quem constitui:

[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele; disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere à tônica e lhe dá sentido harmônico 11 .

Como é possível observar, ao conceituarem os princípios, os autores levam em consideração diversos critérios, como o da fundamentalidade, quando afirmam serem os mesmos mandamentos nucleares de um sistema; da abstração, ao sustentarem que os mesmos possuem uma alta carga de abstração; da hierarquia, quando afirmam que são considerados como normas superiores dentro do ordenamento jurídico.

No entanto, utilizaremos nesse trabalho dos ensinamentos de Robert Alexy que, ao criar a sua Teoria dos Direitos Fundamentais, leva em consideração a estrutura normativa em seu aspecto qualitativo para realizar a diferenciação entre as regras e os princípios. Vejamos:

Hasta ahora, lo que interesaba era el concepto de la norma de derecho fundamental o iusfundamental. Ahora hay que considerar su estructura. A tal fin, pueden llevarse a cabo numerosas distinciones teórico-estructurales. Para la teoria de los derechos fundamentales, la más importante es la distinción entre reglas y principios. Ella constituye la base de la fundamentación iusfundamental y es una clave para la solución de problemas centrales de la dogmática de los derechos fundamentales. Sin ella, no puede existir una teoría adecuada de los limites, ni una teoría satisfactoria de la colisión y tampoco una teoría suficiente acerca del papel que juegan los derechos fundamentales en el sistema jurídico. Es un elemento básico no sólo de la dogmática de los derechos de libertad e igualdad, sino también de los derechos a protección, organización y procedimento y a prestaciones en sentido estricto12/13. Page 6

Assim, verifica-se que, segundo o posicionamento de Robert Alexy, as regras jurídicas são normas que, desde que sejam válidas, devem ser aplicadas na medida do tudo ou nada, ou seja, por completo. Já os princípios, segundo o aludido autor alemão, são normas que somente exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, consistindo em verdadeiros mandamentos de otimização14.

Ainda, de acordo com referido autor, as regras são analisadas em sua dimensão valorativa, enquanto os princípios são analisados na dimensão de peso e, portanto, admitem conformações.

Desse modo, se uma regra é válida deve se fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos; diferentemente dos princípios que apenas ordenam que algo seja feito da melhor forma e na maior medida possível15.

A regra somente pode ser excluída do ordenamento jurídico e ser declarada inválida, no sentido lato da expressão, caso não contenha uma cláusula de exceção e sobrevenha uma outra (nova) regra tratando do mesmo assunto (critério de exclusão de ordem cronológica), ou se uma outra lei de hierarquia superior dispor de forma diversa sobre o mesmo assunto (critério de exclusão de ordem hierárquica), ou ainda, se sobrevier legislação especial passando a tratar a matéria de forma diversa (critério de exclusão levando em conta a especialidade da matéria tratada).

Portanto, ao verificar o extenso rol de direitos e garantias fundamentais previstos, principalmente, no Título II da Constituição, ou em outros dispositivos espalhados pelo aludido texto, é possível verificar que os mesmos podem ser preenchidos tanto por regras jurídicas quanto por princípios.

Em que pese a especial característica da fundamentalidade dessas normas, inclusive com a previsão de aplicabilidade imediata (§ 1º, Art. 5º da...

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