Sistema ou CIS-tema de justiça: Quando a ideia de unicidade dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos fundamentais/Justice system or CIS justice system: when the idea of the uniqueness of trans bodies dictates the rules for access to fundamental rights.

AutorGomes, Mário Soares Caymmi

Não existe uma única forma de ser travesti. Temos diversas travestilidades e possibilidades de ser travesti. Nenhuma é igual àoutra (o experimento da expressão de gênero pode ou não ser constitutivo); não generalize. (YORK, OLIVEIRA e BENEVIDES, 2020a) 1 Situando o problema--corpos trans precisam de passabilidade para serem reconhecidos como titulares de direitos humanos?

"- Eu preciso ver a pessoa. Eu preciso ver."

Muito embora seja ponto pacÃÂfico que os direitos de pessoas LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo), conquistados nos últimos 20 anos (QUINALHA, GREEN; FERNANDES; CAETANO, 2018), sejam oriundos do ativismo polÃÂtico de centenas de grupos e associações, e de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), com eficácia erga omnes, nem sempre os pôr em prática é uma tarefa fácil, até mesmo por aqueles/as que deveriam zelar pela sua observância.

Exemplo disso é a primeira frase desta seção deste artigo, proferida por Promotora de Justiça da Vara de Registros Públicos de Salvador, quando soube que transexuais de outros Estados estavam ajuizando ações para a retificação de prenome e gênero em seus documentos de identificação na capital da Bahia. Ora, dizia a Promotora, se após a edição do Provimento no 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), essas pessoas podiam obter administrativamente essa providência, diretamente junto ao cartório de origem do assentamento, ajuizar uma ação para esse fim era algo que deveria ser tido como suspeito.

Em razão disso, a Promotora passou a requerer a realização de audiências, em suas manifestações nos autos, para que pudesse avaliar visualmente, entre outras coisas, os/as autores/as dessas ações.

Ao acionar a necessidade de fazer uma avaliação visual e presencial do corpo das pessoas trans que buscam atendimento na referida vara, como condição para obter a providência registral, essa integrante do Ministério Público demarca a sua posição de poder-saber, conforme ensina Foucault (2004). Para além de uma inocente avaliação estética desses corpos, vemos nesse exemplo como o Poder Judiciário, sob esse argumento, em verdade busca apreciar a performatividade de gênero (BUTLER, 2003) das pessoas transexuais e travestis. Elas, para terem seu direito assegurado, deveriam performar o seu gênero dentro de uma lógica binária, ou seja, ter aquilo que os estudos transfeministas nomearam por passabilidade (VERGUEIRO, 2015) para conquistar o direito, previsto na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 e Recurso Extraordinário (RE) 670422, de retificação de prenome e gênero, independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual.

Essa posição da Promotora é congruente com a exigência do art. 4o, [section] 3o, do Provimento no 73 do CNJ, que exige que a pessoa transexual vá pessoalmente ao cartório requerer a retificação de seu registro civil, não admitindo que seja outorgada procuração a outrem para fazê-lo, o que dá margem a se inferir que esse comparecimento serve para um escrutÃÂnio da performatividade de gênero do/a requerente (o que inclui uma avaliação estética desse corpo trans), pelas pessoas que integram o sistema de justiça.

Essa polêmica suscitada acima também encontra um precedente com quem dialoga diretamente, nos debates orais ocorridos entre os Ministros do STF, no Plenário, durante o julgamento do RE 845779, que teve como Relator o Ministro Roberto Barroso, inserido como paradigma da Repercussão Geral no 778, que discute o acesso de pessoas trans a banheiros. O Relator, que propunha o julgamento favorável do RE, defendeu a seguinte Tese: os/as transexuais têm direito a serem tratados/as socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público. Logo depois do relator, votou o Min. Fachin, que aderiu ao voto proferido. Não obstante, pediu a palavra o Ministro Marco Aurélio para, ressalvando que não estava proferindo voto, mas buscando um esclarecimento, indagou: "na tese lançada, quanto àidentidade de gênero... ela se daria considerada a aparência; considerado o registro civil; ou considerado o aspecto psicológico?" (1).

E seguiu:

Min. Marco Aurélio: [...] a guardadora do banheiro feminino lhe pediria que ela [a mulher transexual que fora retirada de banheiro feminino e autora da ação] que se dirigisse a um banheiro masculino se ela tivesse a aparência realmente feminina? Roberta Close, por exemplo, que V. Exa. citou, eu tenho certeza, seria admitida num banheiro feminino. Min. Roberto Barroso: No caso concreto, pelo que ela noticia, ela foi... era... é uma mulher num corpo de homem, portanto com a singularidade que isso envolve. Portanto ela esclarece... Min. Marco Aurélio: [...] a presunção é de que essa mulher num corpo de homem é que levou a guardadora do banheiro feminino a pedir que ela se dirigisse ao masculino. [...] Min. Marco Aurélio: Eu custo a acreditar... eu custo a acreditar, senhor Presidente, que no caso a empregada do shopping, responsável pela guarda do banheiro, não é, adotasse a postura que adotou, se a aparência--porque eu presumo que normalmente ocorre--se a aparência realmente fosse feminina. Não teria direcionado, porque aàseria um escândalo, ela com a aparência feminina, entrando num banheiro masculino... (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015. Grifos nossos) (2) Desse trecho do debate oral, em especial dos termos destacados, observa-se que o Ministro Marco Aurélio Mello, ainda que não tenha deliberado em definitivo sobre o caso, deixou evidente que, para ele, a passabilidade de uma pessoa transexual é um elemento que permitirá que ela goze de mais ou menos direitos na sua esfera de ação social. Portanto, a pessoa transexual que não tem passabilidade, pelo que dá a entender o Ministro, tem menos direitos de exercer e reivindicar o reconhecimento de sua autodeterminação de gênero do que aquele/a que passa.

Da análise conjunta dos episódios acima narrados, vemos que o liame comum entre eles reside em que o Poder Judiciário se entende legitimado a perscrutar e avaliar a aparência e a performatividade de gênero de transexuais, como elemento mitigador do princÃÂpio da autodeterminação de identidade de gênero, reconhecido nos precedentes acima referidos.

Esses dois casos apontados demonstram a importância de tecermos considerações crÃÂticas, na esfera do direito, sobre as implicações de avaliações estéticas de pessoas transexuais. Esse ato, que nada tem de "inocente" ou "natural", é formulado pelo/a membro do sistema de justiça visando garantir, implicitamente, uma adequação desses corpos ao chamado "sistema sexo-gênero" binário, conforme Rubin (1975/1993). Para tanto, são praticados atos reiterados de violência simbólica que acabam transmutando essa instituição em cistema de (in)justiça, em uma perspectiva transfeminista adotada neste artigo, como veremos a seguir.

Esse debate não deveria estar sendo travado só no Brasil. Theilen (2020), após fazer um apanhado de decisões, especialmente da Corte Europeia de Direitos Humanos e do Tribunal Constitucional Federal Alemão, aponta que o direito vem sendo usado para restringir direitos fundamentais com base em julgamentos estéticos dessa população, o que demonstra a necessidade de se refletir sobre o tema com urgência:

A maioria dos regimes jurÃÂdicos, incluindo os tribunais que tradicionalmente se mostram bastante ativos no combate a regimes restritivos de reconhecimento legal de gênero, continuam aceitando pré -condições relacionadas àaparência visual das pessoas trans como legÃÂtimas, forçando-as, assim, a criar uma 'realidade social' ostensivamente condizente, a qual se revela conflitante com a classificação legal a eles atribuÃÂda [...] (p. 7) PoderÃÂamos sintetizar da seguinte forma o problema sobre o qual nos dedicaremos a discutir neste artigo: a avaliação que integrantes do sistema/cistema de justiça fazem sobre um corpo transexual ou travesti pode justificar o limite do gozo de direitos humanos dessas pessoas? Esse é um tema muito pouco explorado na literatura jurÃÂdica. Em busca no banco de dados do Google Scholar, usando os termos "direito", "passabilidade", "direitos humanos", não foram encontrados resultados em revistas de conteúdo jurÃÂdico estrito, o mesmo ocorrendo em busca na plataforma Scielo.

A resposta a essa pergunta será explorada de maneira pouco ortodoxa em publicações jurÃÂdicas. Entendemos que o resultado da análise só será bem sucedido se nós expandirmos o contexto teórico e o conhecimento acerca do local onde esse debate se desenrola, ou seja, precisamos destacar não apenas as decisões e debates orais, assim como demais textos proferidos por membros do sistema de justiça, como também empreender esforço para dissecar as regras explÃÂcitas ou não de funcionamento interno deste poder, visando verificar se ele pratica os comandos de tolerância e diversidade que ele mesmo vem reconhecendo.

É convicção dos autores e da autora que a análise apenas dos textos dirigidos às partes de ações judiciais ou aos/às cidadãos/ãs brasileiros/as, nos casos em que haja eficácia erga omnes da decisão, não deveria esgotar o corpus a ser analisado, que também deve enfrentar o ambiente em que esses textos são produzidos, se quisermos ter uma visão global desse fenômeno social.

Essa opção metodológica...

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