Sistemas de Aquisição de Direitos Sobre a Marca

AutorGeraldo Honório de Oliveira Neto
Páginas71-92

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Um direito sobre a marca surge com o seu uso no comércio, embora não seja pacífico o entendimento sobre a sua natureza nos vários sistemas de aquisição de direitos sobre este bem. Este Capítulo contém um estudo sobre a evolução histórica dos sistemas de aquisição de direito sobre a marca no Brasil, que identifica as soluções doutrinárias para o problema e as analisa brevemente, à luz da teoria geral do direito e de princípios de direitos reais.

Os diversos sistemas de aquisição são estudados na ordem histórica em que surgiram no Brasil, sendo declarativos (seção I) os das três primeiras leis sobre marcas (Decreto 2. 682, de 23 de outubro 1875; Decreto 3. 346, de 14 de outubro de 1887, regulamentado pelo Decreto 9. 828, de 31 de dezembro de 1887; e Lei 1. 236, de 24 de setembro de 1904).

O sistema atributivo (seção II) foi instituído pelo Decreto 16. 264, de 19 de dezembro de 1923, que regulamentou a Lei 1. 236, de 1904, e acabou por alterar o seu sistema, embora este entendimento não seja pacífico, como na oportunidade será demonstrado. A Lei 5. 772, de 21 de dezembro de 1971, também instituiu um sistema atributivo.

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O impropriamente denominado sistema misto (seção III) surge no Brasil com o Decreto 7. 903, de 27 de agosto de 1945, e, segundo alguma doutrina, é retomado com a Lei 9. 279, de 14 de maio de 1996.

SEÇÃO I SISTEMA DECLARATIVO

O sistema declarativo de aquisição de direitos sobre a marca foi progressivamente abandonado em todo o mundo, em razão das dificuldades práticas decorrentes da valoração do primeiro uso como suporte fático de direitos. No Brasil, depois do Decreto 16. 264, de 19 de dezembro de 1923, ele não foi mais instituído. Nem por isso o seu estudo é sem importância. Muito ao contrário, pois as lições das maiores autoridades da época sobre o tema, a respeito da "posse" e da "ocupação" de marcas, continuam sendo aceitas por uma parcela da doutrina atual, sem um detido exame de sua aplicabilidade ao sistema legal vigente. Por isso, apresenta-se um estudo sobre o conceito e o histórico deste sistema (§ 1), seguido de uma análise sobre o fato constitutivo de direitos que o caracteriza (§ 2).

§ 1 - Conceito e histórico

O primeiro uso efetivo de um signo distintivo é definido pela doutrina como modo suficiente para a aquisição originária do direito ao uso exclusivo da marca no sistema declarativo: adquire-se a marca pela ocupação, sendo o registro apenas um dos meios de prova da titularidade do direito. Assim, o primeiro usuário pode anular o registro da marca obtido por outrem.

O sistema é declarativo porque o primeiro uso é fato jurídico oponível ao fato do registro, que, por isso, não entra na hipótese de constituição do direito, mas apenas o declara. A verificação da titularidade do direito, mesmo que esta esteja expressa em um certificado de registro de marca, dependerá da verificação de quem é o primeiro usuário do sinal, que se presume ser o primeiro depositante do pedido de registro.

Neste sistema, após o primeiro depósito da marca e até o termo final da prescrição da ação declaratória da sua nulidade219, é possível que se verifique a ocorrência de uso anterior. Nesta hipótese, sendo declarada a nulidade do registro, a autoridade administrativa deverá expedir nova declaração, reconhecendo que o fato novo implica aquisição do direito ao uso exclusivo da marca. A comprovação do uso mais antigo, definido como ocupação da marca, implicaria uma nova declaração registral a respeito da existência e da titularidade do direito. O direito ao uso exclusivo da marca existiria, portanto, antes do registro.

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Paul ROUBIER, nesse sentido, dissertou a respeito do sistema declarativo que vigeu na França até 1964, quando foi substituído pelo sistema atributivo de registro. Sobre este sistema, do qual as legislações brasileiras sobre marca receberam constante influência, o autor afirma que ". . . La propriété d’une marque appartient au premier occupant, c’est-à-dire à celui qui en a fait le premier usage. De ce chef, il peut très légitimement interdire à toute autre personne de s’en servir"220.

Não é qualquer uso que confere o direito, o autor esclarece, não basta imaginar a marca, ela deve ser objeto de uso efetivo, não acidental, por meio de sua aposição nos próprios produtos ou de sua utilização em prospectos, catálogos etc. , de modo que se estabeleça uma publicidade considerável a respeito desta utilização221. O depósito da marca é um modo válido de adquiri-la, mas não pode prevalecer sobre um uso anterior, assim qualificado, feito por terceiro222.

O sistema declarativo é definido por Gama CERQUEIRA como aquele que tem por efeito ". . . conferir certas garantias ao titular da marca, cuja ocupação a lei reconhece como modo de adquirir a sua propriedade, independentemente de qualquer formalidade"223. Osistema, para o tratadista, tem no uso o fundamento da proteção, sendo a ocupação condição suficiente para adquirir a propriedade do bem imaterial e para o reconhecimento deste direito pelo Estado224. O registro é apenas declaratório e estabelece uma presunção de propriedade.

No mesmo sentido, Lélio Denícoli SCHMIDT assevera que ". . . quando se reconhece que a proteção legal do Estado ao usuário da marca independe da aquisição de registro próprio, diz-se que este tem cunho meramente declaratório, pois se limita a reconhecer algo preexistente. Neste sistema, o registro apenas evidencia a propriedade adquirida com a simples ocupação (uso) da marca"225.

Para LEDESMA, os sistemas de aquisição da propriedade da marca estabelecem o ius preferendi, no seu dizer, ". . . el titular del derecho adquirido con anterioridad, tiene preferencia sobre otro de adquisición posterior, de acuerdo al adagio ‘qui prior tempore potius jure’"226. Mas o autor é menos radical a respeito dos efeitos do primeiro uso da marca no sistema declarativo, quando observa que o titular do direito só pode impedir o uso não autorizado do sinal depois que obtém um registro. Para ele o ius preferendi manifesta-se no sistema declarativo ". . . cuando se requiere que la anterior y efectiva ocupación es lo que constituye el

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título que da derecho a la protección jurídica, pero el derecho de impedir que los terceros reproduzcan la marca ya adquirida nace recién con el registro que es el que confiere el privilegio y garantiza la exclusividad de su uso"227.

Apesar de a doutrina conceituar o sistema declarativo como aquele em que o direito ao uso exclusivo da marca tem causa no primeiro uso do signo distintivo, há o entendimento de que o registro é necessário para o acesso às sanções protetivas dessa exclusividade.

A - O Decreto 2. 682, de 23 de outubro de 1875

No regime do Decreto 2. 682, de 23 de outubro de 1875, o primeiro uso ou "posse" da marca implicava preferência na obtenção do registro. O artigo 4º da Lei determinava que os registros fossem feitos na ordem de apresentação, devendo o oficial certificar seu dia e hora, estabelecendo-se assim a prioridade na obtenção do registro pelo critério do primeiro depósito do signo distintivo. Mas deveria prevalecer, sobre a prioridade de apresentação, amarca que tivesse posse mais antiga: o primeiro uso era o critério predominante para a obtenção do registro da marca. É o que se depreende da leitura do artigo 12: ". . . Quando duas ou mais marcas idênticas de indivíduos diferentes forem levadas ao registro no Tribunal ou Conservatoria do Commercio, prevalecerá a marca que tenha posse mais antiga, ou, nenhuma tendo posse, aquella que tiver prioridade na apresentação (artigo 4º); si todas, porém, forem ao mesmo tempo apresentadas, não serão registradas sinão depois de alheadas". Assim, se mais de uma pessoa depositasse a mesma marca, sem que nenhum depositante as houvesse usado, o primeiro depósito servia como critério subsidiário para definir a prioridade na obtenção do registro. Na hipótese, improvável aliás, de apresentação simultânea de marcas idênticas não usadas, um dos depositantes deveria adquirir a marca idêntica, sob pena de não obter o registro.

Importa destacar que o registro e a sua publicação eram imprescindíveis para a defesa do direito ao uso exclusivo de marca, por meio de ação que o legislador denominou reivindicação da propriedade exclusiva. O artigo 2º do Decreto estabelecia que ". . . Ninguém poderá reivindicar, por meio da acção desta lei, a propriedade exclusiva da marca, sem que previamente tenha registrado no Tribunal ou Conservatória do Commercio de seu domicilio o modelo da marca e publicado o registro nos jornaes em que se publicarem os actos officiaes".

A repressão penal de atos de contrafação pressupunha o registro da marca, quer dizer, a contrafação era crime contra o registro de marca, pois o artigo 5º prescrevia: ". . . Sem que se faça constar o registro da marca, nenhuma acção criminal será proposta em juízo contra a usurpação ou imitação fraudulenta della, salvo aos prejudicados o direito à indemnisação, por ação civil que lhe competir".

Interpretando os artigos 2º,5º e 12 do Decreto, acima transcritos, Gama CERQUEIRA afirma: ". . . o reconhecimento da propriedade não decorria do registro, exigindo-se o cumprimento desta formalidade apenas como condição para que a propriedade pudesse ser reivindi-

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cada . . . "; e conclui sobre os efeitos do registro, que, para ele, ". . . conferia, pois, ao dono da marca o uso das garantias especiais da lei, isto é, o uso da ação penal e o direito de proceder à apreensão e destruição das marcas contrafeitas"228.

Cumpre destacar que as garantias especiais ...

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