Sujeito de direito migrante: igualdade e discriminação/Migrant subject of law: equality and discrimination.

AutorBarbosa, Fernando Cesar Mendes

Introdução

Para situar o debate sobre o sujeito de direito migrante forçado (1), igualdade e discriminação, é necessário revisitar, como ponto de partida, o artigo 5 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), que estabelece a igualdade como direito fundamental e prevê o tratamento isonômico a todos, pela lei, inclusive aos estrangeiros.

Para além do tratamento da igualdade jurÃÂdica, a questão da superação das desigualdades sociais e regionais aparece na CF/88, artigo 3, incisos III e IV, e figura como um dos objetivos da República, com a perspectiva polÃÂtica fundada na "(...) promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

Uma leitura conjugada desses incisos indica a obrigatoriedade de o poder estatal criar legislação especÃÂfica, dar tratamento jurisprudencial adequado, formular e executar polÃÂticas públicas para a superação dessas desigualdades, em todas as suas manifestações. Esse conjunto de ações do Estado integra o espectro do direito da antidiscriminação (2) e incide sobre o princÃÂpio jurÃÂdico da igualdade, em sua dimensão formal e material.

A leitura sistêmica das disposições constitucionais sobre a igualdade suscita dúvidas metodológicas que são analisadas por Roger Raupp Rios, nos seguintes termos:

Não há, no encontro destas duas abordagens do princÃÂpio jurÃÂdico da igualdade--a tradicional, mais estática; a da antidiscriminação, mais dinâmica--contradição ou disputa. Ao meu ver, o direito da antidiscriminação fornece ao direito constitucional (com repercussões em todos os ramos do ordenamento jurÃÂdico) categorias em favor da força normativa da Constituição, desvelando, concretizando e desenvolvendo potencialidades e efeitos ora esquecidos, ora pouco desenvolvidos, pertinentes àcompreensão corrente do princÃÂpio jurÃÂdico da igualdade. (2008, p. 13) Nesse mesmo sentido, uma leitura atual, abrangente e eminentemente crÃÂtica sobre a questão da igualdade no Brasil também vem sendo construÃÂda por autores como Silvio de Almeida, que alertam para a existência de fatores estruturais que resultam em discriminações e não são alcançáveis pelo Direito nas suas várias formas de expressão. Desse modo, "(...) a responsabilização jurÃÂdica não é suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial (ALMEIDA, 2021, p. 51).

Nessa configuração jurÃÂdica e social, os migrantes integram a categoria jurÃÂdica de sujeitos de direito destinatários da igualdade formal, mas não são tratados isonomicamente no exercÃÂcio de seus direitos, e sofrem discriminações diretas e indiretas fundadas no status jurÃÂdico de nacionalidade. Por isso, não integram, por inteiro, a categoria jurÃÂdica de cidadão.

Com esse recorte inicial localizado no direito brasileiro, este artigo identifica, por meio da análise da perspectiva jurÃÂdica-liberal, pontos de contato com elementos teóricos e jurisprudenciais entre o direito nacional e o direito da antidiscriminação estadunidense. A experiência jurÃÂdica americana aponta a indissociabilidade entre a liberdade e a igualdade e busca resgatar a liberdade para que os indivÃÂduos possam agir de acordo com seus projetos e valores individuais (MOREAU, 2010).

Em ambos os paÃÂses, a afirmação da liberdade e sua modulação pelo Direito tornaram proibidas as discriminações em razão de raça e gênero, por exemplo. Observa-se que, "sem oportunidades sociais, econômicas e polÃÂticas iguais, a competição--pedra de toque da sociedade industrial capitalista--e, principalmente, a convivência são sempre realizadas em bases e com resultados desiguais" (ROCHA, 1996, p. 284). O direito da antidiscriminação teria como objetivo a prevenção da diminuição das liberdades de ação e de escolha de um indivÃÂduo (PORTILHO; BLOCK, 2012).

Compreendida a partir desta ótica, a discriminação (injusta) significaria uma distorção do sistema jurÃÂdico liberal a respeito do sujeito discriminado, caracterizando-se como um ato de injustiça pessoal por parte dos discriminadores, porque haveria uma interferência no exercÃÂcio das liberdades deliberativas do sujeito (MOREAU, 2010).

Nesse processo de construção teórica do direito da antidiscriminação, identifica-se que entre os principais tipos de discriminação estão a discriminação direta (disparate treatment/direct discrimination) e a discriminação indireta (disparate impact/indirect discrimination) (MOREAU, 2010; DUPPER, 2000), também denominadas "manifestações da primeira geração de teorias de discriminação" (MOREIRA, 2020, p. 411).

A discriminação direta relaciona-se àquelas condutas ou atos normativos que explicitamente discriminam sujeitos em razão de caracterÃÂsticas pessoais (MOREAU, 2010), envolvendo intencionalidade e arbitrariedade (MOREIRA, 2017; 2020), como a proibição legal do voto das mulheres. Em sentido diverso, a discriminação indireta é compreendida como condutas ou normas que, apesar de aparente neutralidade, exercem grande impacto sobre atingidos de maneira desigual em razão da norma ou da conduta aplicada.

Na hipótese de discriminação indireta, cabe o exemplo de instituições que, embora afirmem tratamento igual aos seus empregados, não adotam normas que facilitem o acesso ao emprego ou a cargos e funções mais elevadas por indivÃÂduos de determinados grupos socialmente discriminados, como, por exemplo, pessoas negras e mulheres (MOREIRA, 2017).

Dessa forma, "[...] um ato que estabelece uma mesma consequência jurÃÂdica a todas as pessoas pode afetar grupos especÃÂficos que já sofrem as consequências de outras formas de exclusão" (MOREIRA, 2020, p. 423). Discriminações como essa são também classificadas como discriminação institucional, que "[...] possui uma dimensão coletiva porque expressa a forma como as instituições sociais atuam para promover a subordinação, embora esse não seja seu objetivo primário" (MOREIRA, 2020, p. 486) e "[...] tem um caráter mais encoberto porque não pode ser atribuÃÂda àação de indivÃÂduos especÃÂficos" (MOREIRA, 2020, p. 486).

Esse arcabouço teórico é aplicado para analisar duas situações discriminatórias no Brasil: a negação de direitos polÃÂticos e a (não) revalidação de diplomas de migrantes e refugiados, ao analisar procedimentos de revalidação de diplomas para compreender a relação entre a categoria jurÃÂdica sujeito de direito, entre as injustiças experimentadas por migrantes e refugiados e as aproximações de ambos com categorias jurÃÂdicas do direito da antidiscriminação.

No caso de migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados, o Direito os alcança, mas não consegue lhes oferecer igual proteção a dos nacionais, ou os alcança para estabelecer desigualdade e promover discriminação. Diante desse conjunto de questões identificadas em relação a esses sujeitos, o artigo recorre àanálise de instrumentos normativos e dados de pesquisas que se enquadram nessas diferentes modalidades de discriminação. As possÃÂveis respostas jurÃÂdicas, por meio de legislação especÃÂfica, polÃÂticas públicas e ações afirmativas (RIOS, 2008, p. 155-197), afloram no exame dessas situações discriminatórias.

A questão migratória e a discriminação desafiam as categorias e conceitos do Direito Público e do Direito Privado, e seu enfrentamento abrange o campo de ações concretas dos entes estatais e as relações interpessoais com o Outro que tem necessidades concretas, e demandam e lutam por direitos. A superação dessas desigualdades e discriminações parece, por isso, se situar muito além do complexo campo jurÃÂdico.

Migrantes e refugiados na soleira da cidadania: igualdade e negação de direitos polÃÂticos

A CF/88 estabelece, no seu art. 5, a igualdade como um direito fundamental e afirma: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no PaÃÂs a inviolabilidade do direito àvida, àliberdade, àigualdade, àsegurança e àpropriedade (...)" (BRASIL, 1988).

No art.14, [section]2, a CF/88 veda aos estrangeiros a possibilidade de alistarem-se como eleitores e, no [section]3, é definida a nacionalidade brasileira como condição de elegibilidade, de modo que todos aqueles que não a possuam não podem votar e, tampouco, serem votados para quaisquer dos cargos eletivos de que tratam o artigo.

A vedação constitucional ao exercÃÂcio dos direitos polÃÂticos pelos estrangeiros contraria, frontalmente, a proposta igualitária e democrática que norteia toda a construção polÃÂtica da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito. Essa contradição tem sua origem na ideia de soberania polÃÂtica que controla a nacionalidade e divide os sujeitos de direito em nacionais e não nacionais--estrangeiros.

Contudo, migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados são sujeitos de direito, porque lhes são atribuÃÂdos direitos fundamentais, àexceção do direito fundamental àparticipação polÃÂtica, quanto àpossibilidade de votar e ser votado. Sua situação é paradoxal, pois embora sejam sujeitos de direitos, não são cidadãos brasileiros e não participam da vida polÃÂtica da República. Esse status jurÃ...

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