O sujeito vulnerável: ancorando a igualdade na condição humana/The Vulnerable Subject: anchoring equality in the human condition.

AutorFineman, Martha Albertson

Neste ensaio, desenvolvo o conceito de vulnerabilidade a fim de defender um estado mais responsivo e uma sociedade mais igualitária. Defendo que a vulnerabilidade é - e deve ser entendida como sendo - universal e constante, inerente àcondição humana. A abordagem sobre vulnerabilidade que proponho é uma alternativa àanálise tradicional de igualdade formal perante a lei; é uma investigação "pós-identitária" no sentido de que não se concentra em eventos pontuais de discriminação contra pessoas pertencentes a grupos sociais definidos, mas preocupa-se com os privilégios e os favores concedidos estruturalmente a segmentos limitados da população pelo estado e pela sociedade em geral por meio das instituições estatais. Como tal, a análise da vulnerabilidade concentra-se nas estruturas que nossa sociedade já possui e nas que ainda irá estabelecer para gerenciar nossas vulnerabilidades comuns. Essa abordagem tem o potencial de nos levar além dos confins limitantes dos atuais modelos de igualdade baseados em discriminação, em direção a uma visão mais substantiva de igualdade.

Teorizar ricamente um conceito de vulnerabilidade é desenvolver um princÃÂpio mais complexo em torno do qual se torna possÃÂvel construir polÃÂticas públicas e leis; esse novo conceito pode ser usado para redefinir e expandir as ideias atuais sobre a responsabilidade do estado em relação não apenas a indivÃÂduos como também a instituições. Na verdade, eu argumento que o "sujeito vulnerável" deve substituir o sujeito autônomo e independente afirmado na tradição jurÃÂdica liberal. Muito mais representativo da experiência real vivida e da condição humana, o sujeito vulnerável como centro de nossos esforços polÃÂticos e teóricos permitiria fazer surgir uma visão do estado mais responsivo às necessidades humanas. Tal reimaginação da função estatal é essencial se quisermos alcançar uma sociedade mais igualitária do que a que existe atualmente nos Estados Unidos.

Antes de continuar desenvolvendo a tese da vulnerabilidade, quero abordar alguns impedimentos conceituais àideia de um estado mais responsivo. Em primeiro lugar, um empobrecido senso de igualdade está embutido em nossa doutrina jurÃÂdica atual. Entendemos a igualdade em termos formais, que são focados na discriminação contra indivÃÂduos, mas desatentos às desigualdades sociais subjacentes. Em segundo lugar, a visão de que o papel mais adequado ao estado é o de intervenção mÃÂnima e de abstenção é politicamente poderosa. Até mesmo os auto-identificados reformadores sociais progressistas suspeitam do estado; a retórica da não intervenção prevalece nas discussões sobre polÃÂticas públicas, impedindo medidas positivas destinadas a enfrentar desigualdades. Além disso, idealizamos a figura do "Contrato" e correspondentemente reificamos a tomada de escolhas individuais de maneiras que mascaram o papel da sociedade na perpetuação das desigualdades. O fato de que as instituições sociais desempenham um papel significativo na manutenção e na extensão das desigualdades é a razão pela qual precisamos de um estado que seja responsivo, isto é, mais ativo, a essa realidade.

  1. Os limites da igualdade formal

    Durante séculos, o conceito de "igualdade" no pensamento ocidental foi associado àfilosofia do individualismo liberal de John Locke - e àcriação do sujeito liberal (LOCKE, 2003). "Igualdade" no modelo liberal é a expressão da ideia de que todos os seres humanos são por natureza livres e dotados dos mesmos direitos inalienáveis. Embora essa visão de igualdade tenha um potencial radical inerente, nos Estados Unidos hoje viemos a entender "igualdade" estritamente como a exigência de igualdade de tratamento perante a lei (FINEMAN, 1994; FINEMAN, 2004, p. 10--"A igualdade se manifesta em meras garantias formais ou legais de igualdade de tratamento para os indivÃÂduos.") na forma de um mandato formal de antidiscriminação aplicado principalmente por meio dos tribunais. Todos nós conhecemos a lista de categorias protegidas encontradas na doutrina de igual proteção perante a lei: raça, sexo, religião, origem nacional e assim por diante. (1) Essas classificações definem categorias jurÃÂdicas individuais e constituem os eixos principais em torno dos quais podem ser feitas reivindicações por tratamento igual. Este sistema de categorias baseadas em trações de identidade define a organização de diferentes grupos de interesse. Na verdade, essas categorias jurÃÂdicas em última análise enquadram o conteúdo e influenciam a direção da lei americana.

    Nosso entendimento atual de igualdade foi moldado em parte pela história do século XX, durante o qual houve o uso da doutrina de proteção igual como uma ferramenta para combater formas flagrantes de discriminação com foco em raça, sexo e etnia. Em particular, as reformistas jurÃÂdicas feministas durante a última parte do século suspeitavam de qualquer diferença de tratamento, mesmo que fosse destinada a favorecer mulheres. Elas exigiam igualdade formal e rejeitavam qualquer consideração "especial" porque, em sua experiência, qualquer classificação baseada em diferenças de sexo levava àexclusão e subordinação de mulheres.

    O problema com um modelo formal de igualdade é que ele é limitado de várias maneiras importantes. A "igualdade", reduzida àigualdade de tratamento perante a lei ou àproibição de discriminação, tem se mostrado uma ferramenta inadequada para resistir ou perturbar formas persistentes de subordinação e dominação. (2) Embora esse modelo possa ser usado com sucesso para resolver algumas situações de discriminação, ele falha em proteger contra outras. Essa doutrina de proteção igual perante a lei também não fornece proteção adequada contra discriminação levada a cabo com base em categorias ainda não reconhecidas em lei, como deficiência ou orientação sexual. Essa versão de igualdade é também fraca em sua capacidade de abordar e corrigir as disparidades no bem-estar econômico e social entre os vários grupos de nossa sociedade. A igualdade formal não é perturbada - e pode até servir para validar - os arranjos institucionais existentes que privilegiam alguns e prejudicam outros. Ela não fornece uma estrutura para desafiar alocações de recursos e poder -- Fineman (2005, págs. 36 e 37) analisa as desigualdades econômicas e sociais que persistem apesar do uso do modelo de igualdade formal. A menos que alguma distorção seja percebida como sendo introduzida por um viés inadmissÃÂvel, o estado não é responsável. Tampouco se entende que o estado intervém ou interfere apropriadamente quando a discriminação é realizada por atores privados, sejam eles do "livre" mercado ou da famÃÂlia, uma seara "privada". O modelo de igualdade formal, portanto, não só falha em levar em consideração desigualdades de circunstâncias existentes, mas também falha em interromper formas persistentes de desigualdade.

    Se olharmos para a sociedade americana, veremos uma longa e crescente lista de desigualdades materiais e sociais - não temos garantia de bens sociais básicos, como alimentação, moradia e saúde, e temos uma rede de sistemas econômicos e polÃÂticos dominantes que não apenas toleram, mas justificam grosseiramente distribuições desiguais de riqueza, poder e oportunidades. (3) No entanto, a versão do princÃÂpio da igualdade que defende a igualdade de tratamento perante a lei sem tratamento diferenciado tem se mostrado resiliente diante dos argumentos a favor de um conceito mais substantivo de igualdade--um conceito voltado para resultados e que leve em consideração as circunstâncias passadas e as obrigações futuras, assim como necessidades humanas e desvantagens estruturais. Além disso, o tratamento formalmente igual tem sido usado para argumentar cada vez mais eficazmente contra medidas como ações afirmativas que podem gerar remédios para as iniquidades do passado.

    De uma perspectiva polÃÂtica e de polÃÂticas públicas, o modelo atual de igualdade formal é também limitado quando entendido como um princÃÂpio de anti-discriminação porque suas proteções parecem não se estender a todos. Politicamente, essa limitação é problemática porque pode e tem resultado em um backlash significativo por parcelas não contempladas da população. Ainda mais significativo a longo prazo foi o fato de que o objetivo de enfrentar a discriminação contra certos grupos eclipsou em grande parte, e até mesmo se tornou um substituto, ao objetivo de eliminar as desigualdades materiais, sociais e polÃÂticas que existem entre os grupos sociais. Nesse sentido, as categorias de identidade no tocante ao princÃÂpio de anti-discriminação ao mesmo tempo não incluem todos que deveriam incluir e abarcam mais do que deveriam abarcar. (4)

    Os grupos que as análises tradicionais de proteção igualitária reconhecem incluem alguns indivÃÂduos que são relativamente privilegiados, apesar de serem membros desses grupos identitários. Na verdade, embora a raça ou o gênero possam complicar e agravar a desvantagem, os sucessos individuais abundam nessas e em outras categorias que a Cláusula de Proteção Igualitária demarca. Esses sucessos individuais criam armadilhas teóricas e empÃÂricas: indivÃÂduos bem-sucedidos que pertencem a um grupo protegido legalmente podem minar a coerência e diluir a...

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