Superexploração, acidentalidade e terceirização nos desastres da mineração/Over exploitation accidentality and outsourcing in mining disasters.

Autorde Faria Galvão, Daniel

Introdução

Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz consigo ao povo latino-americano que, com seu sacrifÃÂcio, o cria. A pobreza não está escrita nos astros; o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desÃÂgnio de Deus Trechos de As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano (1) É atribuÃÂda ao filósofo grego Aristóteles a célebre frase "A arte imita a vida". Trata-se de expressão tão habitualmente utilizada que, por muitas vezes, esquecemos o poder desse pequeno conjunto de palavras para descrever as incontáveis semelhanças entre o imaginado e o vivido. E por mais que essa aproximação entre a arte e a realidade aparente, em uma primeira vista, estar distante do nosso objeto de estudo, um olhar mais atento sobre essas relações pode nos ajudar a elaborar importantes reflexões sobre os desastres empresariais ocorridos em Mariana e Brumadinho (2).

Entre setembro de 2018 e abril de 2019, a cidade de Mariana foi utilizada como palco de uma novela transmitida em âmbito nacional. Sob o sugestivo nome de Espelho da Vida, o enredo acompanhava as desventuras de Cris Valencia, personagem que, após descobrir a existência de um portal para vidas passadas, passara a viver entre o presente e o passado. É verdade que esta vivência entre dois tempos era bastante problemática (sendo que em uma das passagens da trama a personagem principal chegou a ficar presa no passado), mas a partir dessa alegoria o que se quer é apontar para um cenário muito mais tormentoso que o vivido pelos mocinhos e bandidos da TV. Trata-se da realidade de uma "mineração sem peias" (3), vivenciada na pele pelas populações de Mariana e Brumadinho, nos últimos oito anos, mas cujas raÃÂzes remontam a um passado secular. Como no poema "A parada do velho novo", de Brecht (4), em que o velho, sem conseguir esconder as marcas da idade, tentava ludibriar os passantes travestindo-se de novo, a indústria da mineração e seus nefastos efeitos tentam se valer da mesma jogada. Intentam vender as centenas de mortes e a dizimação da natureza ocorridas em Mariana e Brumadinho como algo recente, fruto de uma externalidade, e esquecem, propositadamente, de todo um passado de exploração (5). Mas é nesses tempos de ressaca, em que os celebrados êxitos da indústria do minério para a redistribuição econômica/melhoria social desmancham no ar, que a história ganha força para ser desvelada (6). Assim é que, ao longo deste artigo, pretende-se demonstrar que o "modus operandi" de espoliação e saque é, na realidade, ÃÂnsito àrelação de subserviência dos paÃÂses latino-americanos aos paÃÂses capitalistas centrais. Atuando desde os tempos do "descobrimento" até os dias de hoje como fornecedora de matérias-primas, serve a América Latina apenas para cumprir os desÃÂgnios dos paÃÂses centrais, em sua sanha pela acumulação de capital. E dentro desse esquema, como forma de compensar a exportação dos lucros para as "metrópoles", a superexploração do trabalho, instrumentalizada pela terceirização e materializada em acidentalidade e morte, se torna um importante mecanismo de extração de mais-valia pelas classes burguesas periféricas. É o desvelar deste histórico de violências passadas e presentes e da sua influência na ocorrência dos desastres empresariais estudados a nossa preocupação principal neste momento.

Feitas estas considerações, o presente artigo terá como objeto investigar, àluz da teoria da dependência e do materialismo histórico, os desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho e, especialmente, as consequências destes para seus trabalhadores e para a natureza. A tÃÂtulo de problema investigativo, o que se pretende é tentar responder àseguinte indagação: as centenas de mortes e a dizimação da natureza ocorridas em Mariana e Brumadinho seriam fruto de uma mera externalidade, como apontam as empresas mineradoras, ou seriam o resultado de uma lógica exploratória de caráter estrutural? A hipótese levantada é que toda essa devastação, presente nos dois desastres, teria causa estrutural, relacionada àsubserviência dos paÃÂses latino-americanos aos paÃÂses capitalistas centrais e baseada em instrumentos como a superexploração. Empregando o método dialético, o presente artigo se valerá da análise bibliográfica e documental como técnicas de pesquisa.

1. Um passado colonial que ainda persiste

Pensando nos contornos da realidade brasileira e dos muitos brasis que nela convivem, é certo dizer que poucos intelectuais conseguiram alcançar a profundidade das análises elaboradas pelo historiador Caio Prado Júnior. Embora os seus principais trabalhos se situem entre as décadas de 1940 e 1960, a capacidade de Prado Júnior investigar os problemas sociais até as entranhas torna a sua obra não apenas atual, mas imprescindÃÂvel para entender a contemporaneidade. Tome-se como exemplo a visão de Prado Júnior da história. Servindo-se das premissas do materialismo histórico marxista, Prado Júnior entendia a história não apenas como memória, mas como algo vivo, corrente (7). Sobre o passado colonial, afirmava o autor que ele (8) "aàainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir" (9). E jogando luz às resistentes marcas da colonização, Prado Júnior explica que a "presença de uma realidade já muito antiga que até nos admira de aàachar" (10) se dá quanto a "caracteres fundamentais da nossa estrutura econômica e social" (11):

No terreno econômico, por exemplo, pode-se dizer que o trabalho livre não se organizou ainda inteiramente em todo o paÃÂs conservando traços bastante vivos do regime escravista que o precedeu. O mesmo poderÃÂamos dizer do caráter fundamental da nossa economia, isto é, da produção extensiva para mercados do exterior, e da correlata falta de um largo mercado interno solidamente alicerçado e organizado. Donde a subordinação da economia brasileira a outras estranhas a ela; subordinação aliás que se verifica também em outros setores. (12) Especificamente no que se refere àindústria mineradora no Brasil, os traços coloniais saltam aos olhos. A partir de uma contÃÂnua relação de subordinação, se assiste àexportação dos lucros (exorbitantes) e empregos gerados pela atividade extrativista para os paÃÂses do capitalismo central. É sobre isso que se tratará nos tópicos seguintes.

I.I Memórias de um Brasil extrativista: de costas para si e voltado para o exterior

Em "O Sentido da Colonização", capÃÂtulo do livro "Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia", Prado Júnior busca desnaturalizar o processo de "descobrimento" da América portuguesa. Realizando uma análise sistemática e crÃÂtica deste perÃÂodo ele aponta que seria errôneo entender a colonização da América portuguesa como "um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos paralela a outras semelhantes, mas independente dela (13) ". Esse evento se enquadra em um contexto histórico especÃÂfico fruto de "uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar (14) ". Foi pelo desenvolvimento das novas técnicas marÃÂtimas (e avantajados por suas localizações geográficas) que paÃÂses como Portugal e Espanha ganharam força para superar a concorrência dos territórios centrais do Continente e desenvolver a expansão ultramarina (15). Mas ainda mais importante que entender a "descoberta" do Brasil como um fato sistêmico, integrante de uma conjuntura histórica especÃÂfica, é perceber que a força motriz desses "descobrimentos" era o interesse comercial europeu. Como revela Prado Júnior, é pela falta de interesse comercial que nas décadas iniciais da epopeia colonizadora nenhum dos europeus apresentou interesse em povoar o território americano. Afinal de contas "é o comércio que os interessa, e daào relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestÃÂgio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis" (16). E mesmo quando o povoamento passou a ser considerado importante, essa importância se deu com o intuito exclusivo de "criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem a seu comércio." (17) Essa lógica de povoar a América para impulsionar o comércio metropolitano apenas iria ser excepcionada, em alguma medida, pela ocorrência de situações peculiares. Em parte, em virtude das lutas polÃÂtico-religiosas que inundaram a Inglaterra daquele perÃÂodo e que empurraram para as zonas temperadas americanas populações que buscavam "procurar ali abrigo e paz para as suas convicções" (18). E de modo adicional, motivada pelo massivo deslocamento para este mesmo território da população inglesa expulsa "dos campos, que de cultivados se transformam em pastagens para carneiros cuja lã iria abastecer a nascente indústria têxtil" (19). Embasada por razões religiosas ou socioeconômicas, o que irá resultar dessa nova leva migratória será uma colonização com objetivos diversos das outras formas então praticadas, marcada pela busca de melhores oportunidades de vida e não somente pelo fomento àexistência de outros povos. (20)

De modo contrário, e especialmente no...

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