Teoria do fato jurídico

AutorAurora Tomazini de Carvalho
Páginas577-630
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Capítulo XIII
TEORIA DO FATO JURÍDICO
SUMÁRIO: 1. Evento, fato e fato jurídico; 2. Ambiguidade da ex-
pressão “fato jurídico”; 3. Intersubjetividade do fato jurídico; 4.
Categorias da semiótica – objeto dinâmico e objeto imediato; 5.
Fato jurídico e categorias da semiótica; 6. Teoria das provas e
constituição do fato jurídico; 7. Teoria da legitimação pelo pro-
cedimento e a relação entre verdade e fato jurídico; 8. Tempo e
local do fato x tempo e local no fato; 9. Erro de fato e erro de di-
reito; 10. A falsa interdisciplinaridade do fato jurídico; 11. Fatos
jurídicos lícitos e ilícitos.
1. EVENTO, FATO E FATO JURÍDICO
O direito se dinamiza por meio de fatos. Toda produção
de efeitos no âmbito jurídico pressupõe a verificação (em lin-
guagem competente) de um acontecimento, descrito como hi-
pótese de uma norma geral e abstrata. Para relatar tal aconte-
cimento, no entanto, é preciso conhecê-lo, o que, para nós, só é
possível mediante linguagem. Percebemos os acontecimentos
pela modificação de um estado físico que se esvai no tempo
e no espaço. À tal modificação só temos acesso cognoscitivo
pela linguagem que dela fala. Tem-se aqui a importância da
diferenciação entre evento, fato e fato jurídico estabelecida por
PAULO DE BARROS CARVALHO.
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AURORA TOMAZINI DE CARVALHO
Chamamos de evento o acontecimento do mundo fenomê-
nico despido de qualquer formação linguística. O fato, por sua
vez, é o relato do evento. Constitui-se num enunciado denotati-
vo de uma situação delimitada no tempo e no espaço. E por fato
jurídico entende-se o relato do evento em linguagem jurídica.
Enunciado, também denotativo de uma situação delimitada no
tempo e no espaço, constituído em linguagem competente, que
ocupa posição de antecedente de uma norma jurídica individu-
al e concreta. A diferença entre evento e fato repousa no dado
linguístico e, entre fato e fato jurídico, na competência da lin-
guagem. Evento é uma situação de ordem natural, pertencente
ao mundo da experiência, fato é a articulação linguística desta
situação de ordem natural e fato jurídico é a sua articulação em
linguagem jurídica.
Os acontecimentos do mundo fenomênico se perdem. Mal
percebemos as modificações que se operam no plano da ex-
periência e elas já fazem parte do passado. Não temos como
aprisioná-las no tempo e no espaço e nem como repeti-las, pois
cada ocorrência é única. O que podemos é falar sobre elas. As-
sim, distingue-se: o fato, enunciado linguístico sobre as coisas,
os acontecimentos, as pessoas e suas manifestações; do evento,
objeto da experiência sobre o qual se fala436. Observemos, por
exemplo, o andar de uma pessoa: cada passo pode ser percebi-
do separadamente, por meio dos sentidos humanos, quando
tomados como objeto de experiência. Todos eles, no entan-
to, perdem-se no instante e lugar de execução da própria ação
(andar). Mas, se, em algum momento, alguém diz: “Fulano deu
um passo maior que o outro”, temos um enunciado linguístico
que se refere aos passos dados por alguém. Nota-se que, aos
passos efetivamente dados, objeto da experiência (evento), não
temos mais acesso, somente à linguagem que deles fala (fato).
Os fatos referem-se sempre a ocorrências passadas e é
somente por meio desta referência que temos conhecimento
436. JURGEN HABERMANS, Teoría de la acción comunicativa: complementos y
estúdios prévios, p. 117.
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CURSO DE TEORIA GERAL DO DIREITO
dos objetos da experiência a que eles se referem. Vejamos os
exemplos: “Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em
1500”, “A seleção brasileira de futebol ganhou o campeonato
mundial em 1970”, “A economia estabilizou-se com o advento
do plano real”, “Maria casou-se com José”, são todos fatos,
enunciados linguísticos que se referem à situações de ordem
fenomênica. O acontecimento “descoberta do Brasil”, a ocor-
rência “final do campeonato mundial de futebol de 1970”, a
situação de “estabilização da economia no plano real” e “o
casamento de Maria com José”, são eventos que se perderam no
passado. Conhecemos tais eventos, contudo, por meio dos enun-
ciados que a eles se reportam. Nesse sentido, qualquer afirma-
ção ou negação que se pretenda fazer será sempre dos enun-
ciados linguísticos (fatos), não dos objetos a que eles se referem
(eventos), sobre estes apenas se têm, ou não, experiência.
É somente por meio da linguagem que o homem é capaz
de organizar uma situação existencial como realidade para
constituí-la como objeto de seu conhecimento. Só conhece-
mos as modificações do plano experimental quando as orga-
nizamos linguisticamente. Assim, a compreensão de qualquer
acontecimento requer articulação linguística, um recorte no
contínuo heterogêneo do mundo circundante perceptível, ca-
paz de identificar certa situação como objeto.
Seguindo a proposta de classificação dos objetos de HUR-
SEL sintetizada por CARLOS COSSIO, os fatos se qualificam
entre os objetos culturais, já os eventos, entre os objetos reais.
Os eventos são experimentados por meio de nossos sentidos e
os fatos são compreendidos mediante a interpretação.
Ensina TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. que: “o fato
não é algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico
capaz de organizar uma situação existencial como realida-
de”437. Segundo a concepção do giro-linguístico, à qual nos fi-
liamos, a realidade, tal qual se apresenta aos seres humanos,
nada mais é do que um sistema de signos articulados num
437. Introdução ao estudo do direito, p. 253.

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