O testamento vital na experiência estrangeira

AutorLuciana Dadalto
Páginas95-125
5
O TESTAMENTO VITAL
NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
“Una legge sul Testamento biologico non deve risolvere um problema della politica, ma
riconoscere un diritto dei cittadini.
Stefano Rodotá
Se é certo que o testamento vital é um instituto ainda pouco conhecido no Bra-
sil, não se pode olvidar que a experiência estrangeira acerca de tal documento é de
grande valia para uma análise detalhada do instituto e de como ele tem sido aplicado,
a fim de orientar a construção de parâmetros jurídicos para a feitura e efetivação do
testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro.
O presente capítulo, portanto, tem por objetivo específico fazer um esforço
histórico a fim de verificar as origens do testamento vital, bem como analisar como
esse documento tem sido utilizado nos países em que está positivado.
Assim, o que se pretende é a análise do testamento vital em diversos países e a
característica do instituto em cada um deles, sob os diversos nomes a ele concedido:
living will, biotestamento, testament de vie, instruciones previas, testamento vital etc.
5.1. A EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA
A expressão living will foi cunhada nos EUA no final da década de 1960. Segundo
Emanuel,1 o testamento vital foi proposto pela primeira vez em 1967 pela Sociedade
Americana para a Eutanásia, como um “documento de cuidados antecipados, pelo
qual o indivíduo poderia registrar seu desejo de interromper as invenções médicas
de manutenção da vida.”2
O primeiro modelo de living will e as premissas desse documento foram cunhados
por Luiz Kutner,3 em 1969, que amparou-se no consentimento livre e esclarecido
para desenvolver o testamento vital e, inclusive, propôs que os pacientes pudessem
acrescentar uma cláusula ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
1. EMANUEL, Ezekiel J.; EMANUEL, Linda L. Living wills: past, present, and future. The Journal of Clinical
Ethics, Hagerstown, v. 1, n. 1, p. 1-19, 1990.
2. […] the living will was proposed as an individual could specify his or her wish to terminates life-sustaining
medical interventions. EMANUEL, Ezekiel J.; EMANUEL, Linda L. Living wills: past, present, and future.
The Journal of Clinical Ethics, Hagerstown, v. 1, n. 1, 1990, p. 10.
3. KUTNER, L. Due process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal. Indiana Law Journal. v. 44, p. 539-
554,1969.
TESTAMENTO VITAL 5ED.indb 63TESTAMENTO VITAL 5ED.indb 63 23/03/2020 21:03:1423/03/2020 21:03:14
TESTAMENTO VITAL • LUCIANA DADALTO
64
assinado para a realização de cirurgias ou procedimentos mais radicais, manifestando
sua recusa a tratamentos caso sua condição se torne incurável ou seu corpo fique em
estado vegetativo.4
Reconhecendo que a legislação norte-americana vedava a eutanásia e o sui-
cídio assistido, mas, que ao mesmo tempo, era legítimo o direito do paciente com
um quadro incurável e irreversível morrer como desejar, ele defendeu que seguir
os desejos desse paciente acerca de recusas de tratamentos se afastava do conceito
clássico de eutanásia, uma vez que essa recusa não englobava os meios ordinários
de preservação da vida.
Desta feita, Kutner propôs um documento, ao qual atribuiu o nome de living
will,5 em que o paciente deixaria escrito sua recusa a se submeter a determinados
tratamentos quando o estado vegetativo ou a terminalidade fosse comprovada, in-
clusive, propôs que os seguidores da religião Testemunhas de Jeová o utilizassem
para manifestarem recusa às transfusões sanguíneas. Com esse estudo, Luis Kutner
alicerçou as bases do testamento vital que, a partir disso, tem sido estudado, discutido,
modificado e criticado pelos estudiosos da Bioética. Desde então, os Estados Unidos
da América em muito evoluíram nos documentos de manifestação de vontade para
tratamentos médicos.
Os EUA possuem um sistema legal de common law, o que significa, em linhas
gerais, que a legislação é criada a partir da jurisprudência. O primeiro caso judicial
a tratar do living will foi em 1976, ano em que Karen Ann Quinlan, uma americana
de 22 anos, entrou em coma por causas nunca reveladas6 e seus pais adotivos, após
serem informados pelos médicos da irreversibilidade do caso, solicitaram a retirada
do respirador e da AHA, e, frente à recusa do médico responsável pelo caso, aciona-
ram o Poder Judiciário de New Jersey, estado no qual a paciente residia, objetivando
uma autorização judicial para a suspensão do esforço terapêutico,7 alegando que a
jovem havia manifestado o desejo de não ser mantida viva por aparelhos, em con-
4. Op. Cit., p. 550.
5. Esse termo apareceu pela primeira vez, em 1967, em uma proposta da Sociedade Americana para a Eutanásia,
instituição à qual Kutner prestava serviços jurídicos. In: EMANUEL, Linda L. Living wills: past, present,
and future. The Journal of Clinical Ethics, Hagerstown, v. 1, n. 1, 1990, p. 10.
Kutner sugeriu outros nomes para o instituto: “declaração que determina o fim da vida” (declaration deter-
mining the termination of life), “testamentopermitindo a morte” (testament permitting death), “declaração de
autonomia corporal” (declaration for bodily autonomy), “declaração de término do tratamento”(declaration
for ending treatment) e “relação de confiança do corpo” (body trust), contudo, o nome living will (desejos
de vida) é o mais adotado, até mesmo por ter sido utilizado no título do paradigmático artigo sobre o tema.
Todavia, é preciso ter em mente que “testamento vita”, nome pelo qual o living will é conhecido no Brasil,
é uma tradução errada, vez que will é sinônimo de testamento, mas também de desejo, razão pela qual a
tradução literal mais apropriada seria “desejos de vida”.
6. As causas do coma de Karen Ann Quinlan nunca foram esclarecidas. Isso gera várias informações desencon-
tradas na doutrina jurídica. Existem informações de que Karen entrou em coma em virtude de um acidente
automobilístico e outras que o coma foi em decorrência de consumo excessivo de álcool e drogas.
7. Ribeiro (2005) afirma que esforço terapêutico é a prática de manter o paciente diagnosticado com quadro
incurável vivo com ajuda de aparelhos.
TESTAMENTO VITAL 5ED.indb 64TESTAMENTO VITAL 5ED.indb 64 23/03/2020 21:03:1523/03/2020 21:03:15

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT