Título II - Dos direitos fundamentais
Autor | Paulo Franco Lustosa |
Páginas | 50-196 |
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TÍTULO II
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Capítulo I
Do Direito à Vida
Paulo Franco Lustosa
Art. 10. Compete ao poder público garantir a dignidade da pessoa com de-
ciência ao longo de toda a vida.
Parágrafo único. Em situações de risco, emergência ou estado de cala-
midade pública, a pessoa com deciência será considerada vulnerável, de-
vendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança.
1. ASPECTOS GERAIS
Inaugura o Título II do Estatuto da Pessoa com Deficiência, dedicado aos di-
reitos fundamentais, o capítulo que disciplina o direito à vida da pessoa com defici-
ência. Em quatro dispositivos, o Capítulo I do Título II assegura direitos da pessoa
com deficiência em situações de risco, em face do poder público, e reconhece a sua
autonomia diante de pesquisas científicas e intervenções ou tratamentos médicos,
notadamente em casos de risco de morte e de emergência em saúde.
Consagrado como direito fundamental de todos os indivíduos no art. 5º, caput,
da Constituição, o direito à vida também recebeu tratamento especial na Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York, em 30 de
março de 2007, e internalizada por meio do Decreto Legislativo 186, de 9 de julho
status de norma constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. De acordo com
o art. 10 da Convenção:
Os Estados Partes rearmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida e tomarão todas
as medidas necessárias para assegurar o efetivo exercício desse direito pelas pessoas com de-
ciência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Por sua vez, o art. 10 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que encabeça
o capítulo dedicado ao direito à vida, estabelece o dever do Estado de “garantir a
dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a sua vida”. Como se sabe,
o direito à vida – que é um direito inato (inerente à pessoa humana), absoluto (no
sentido de ser oponível erga omnes), extrapatrimonial (pois afeto à esfera existencial),
intransmissível (porque o indivíduo goza dos seus próprios atributos) e imprescri-
tível (já que o titular pode sempre invocá-lo) – abrange não somente o direito de
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ART. 10
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existir, de não ser privado da vida, mas igualmente o direito de ter uma vida digna,
garantindo-se as necessidades vitais básicas do ser humano.1
Numa primeira leitura, a previsão contida no caput pode parecer despicien-
da, na medida em que a Constituição de 1988 já reconhece a dignidade humana
como fundamento da República Federativa (art. 1º, III), do qual se extrai a cláusula
geral de proteção de toda e qualquer pessoa humana, e não apenas daquelas com
deficiência. Contudo, para além de reforçar a importância de se assegurar o acesso
aos direitos básicos por parte de uma minoria que vive um processo acentuado de
exclusão, a previsão legal afasta qualquer questionamento que possa ser levantado,
com base em concepções filosóficas que aproximam de forma intrínseca as noções
de autonomia e dignidade, acerca da dignidade das pessoas que têm seu poder de
autodeterminação limitado por alguma deficiência mental.2
Nesse contexto, foi feliz o legislador ao inaugurar o capítulo destinado ao di-
reito à vida da pessoa com deficiência estabelecendo que compete ao poder público
garantir a dignidade desta ao longo de toda sua vida. Reconhece-se, com isso, que
a vida, para ser digna, precisa, intrinsicamente, da mais ampla liberdade possível
no que toca às relações não patrimoniais,3 bem como que não pode ser dito livre
aquele que não pode usufruir das condições materiais mínimas para a existência
com dignidade.
2. A VULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Já no parágrafo único do dispositivo em comento, não parece tecnicamente
adequada a afirmação de que a pessoa com deficiência, em situações de risco, emer-
gência ou estado de calamidade pública, será considerada vulnerável. Toda pessoa
1. A saúde é um direito definido pelo constituinte como direito fundamental (consagrado no caput do art. 5º
ao garantir o direito à vida), direito social (art. 6º) e, ainda, direito de todos e dever do Estado (art. 196).
Um ano após o advento da Constituição de 1988, adveio a Lei 7.853/89, que estabelece o dever do poder
público de assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seu direito à saúde, com a
adoção de diversas medidas voltadas à garantia de um tratamento prioritário e adequado na área de saúde
(art. 2º, caput, e parágrafo único, inciso II). Mais recentemente, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, e internalizada por meio do Decreto
Legislativo 186, de 9 de julho de 2008, assegurou às pessoas com deficiência, em seu art. 25, o direito de
gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência, com a previsão
de uma série de medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde.
2. Conforme observado por Ingo Sarlet, não é adequado entender que a autonomia é um pressuposto da
dignidade humana: “Importa, contudo, ter presente a circunstância de que esta liberdade (autonomia) é
considerada em abstrato, como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar
sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que
também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de grave doença mental) possui exatamente
a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente capaz” (Dignidade da pessoa
humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 85).
3. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 190.
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com deficiência é vulnerável, por definição, na medida em que tem impedimento
de longo prazo capaz de “obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 2º, EPD). Quando exposta a
tais circunstâncias de risco, a pessoa com deficiência torna-se ainda mais suscetível
de ser ferida em sua existência digna (hipervulnerável, como sugerem alguns auto-
res) e, portanto, merecedora de uma proteção jurídica ainda mais efetiva. Tanto é
assim que, em outra passagem, o legislador do Estatuto considerou especialmente
vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência, para os fins
de proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante (art. 5º, EPD).
Diante dessa graduação de vulneração, resta claro que o intuito do legislador
foi o de reforçar o dever do poder público de adotar medidas mais eficazes para a
proteção e segurança das pessoas com deficiência expostas a situações de risco,
notadamente por versar o dispositivo sobre a vulnerabilidade existencial.4 A rigor,
porém, a criação de categorias ou de diferentes graus de vulnerabilidade, embora
possa ser útil em alguns casos, é prescindível. Conforme explica Carlos Konder:
O fundamental, dessa forma, é reconhecer que a vulnerabilidade existencial prescinde de
qualquer tipicação, eis que decorrência da aplicação direta dos princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, devendo sempre ser avaliada em atenção
às circunstâncias do caso concreto.5
Nesse sentido, mais importante do que construir tipos padrão de vulnerabilida-
des das pessoas com deficiência, é promover a tutela de cada pessoa com deficiência
de acordo com as suas concretas necessidades. As medidas a serem adotadas pelo
poder público a fim de assegurar a proteção e a segurança das pessoas com deficiência
devem se conformar com a natureza do impedimento que caracteriza a deficiência
(física, mental, intelectual ou sensorial) e com as barreiras existentes no meio, que
potencializam aquele impedimento. Em especial, merecem proteção as situações
subjetivas existenciais de que seja titular, na medida em que os atos de autonomia
de caráter existencial, que visam ao livre desenvolvimento da pessoa, se relacionam
diretamente à cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, prevista no
4. Segundo sistematização proposta por Carlos Konder, “a vulnerabilidade existencial seria a situação jurídica
subjetiva em que o titular se encontra sob maior suscetibilidade de ser lesionado na sua esfera extrapatri-
monial, impondo a aplicação de normas jurídicas de tutela diferenciada para a satisfação do princípio da
dignidade da pessoa humana. Diferencia-se da vulnerabilidade patrimonial, que se limita a uma posição
de inferioridade contratual, na qual o titular fica sob a ameaça de uma lesão basicamente ao seu patrimô-
nio, com efeitos somente indiretos à sua personalidade” (Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade
existencial: por um sistema diferenciador. Revista de Direito do Consumidor, vol. 99/2015, maio-jun./2015.
p. 5).
5. Ibidem, p. 6.
6. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
p. 96-98.
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