Transfeminicídio: genealogia e potencialidades de um conceito/Transfeminicide: genealogy and potentialities of a concept.

AutorAraújo Ramos, Emerson Erivan de
  1. Introdução

    TransfeminicÃÂdio é um conceito criado para descrever o assassinato de travestis e mulheres transexuais por razão de gênero, cuja motivação é especificamente o desprezo ao trânsito que essas pessoas realizam desde o que socialmente é entendido como masculino (gênero que lhes foi atribuÃÂdo ao nascer) em direção ao que socialmente é entendido como feminino. Esse conceito foi articulado por Berenice Bento (2014; 2017) como uma derivação da ideia de feminicÃÂdio, outro importante conceito nos estudos de gênero.

    Delimitar quem pode ser vÃÂtima de feminicÃÂdio (as pessoas assassinadas por essa motivação) não era um grande problema quando a categoria destinava-se unicamente às mulheres cisgêneras, mas passa a ser a partir do momento que as travestis e mulheres transexuais reclamam espaço junto ao movimento feminista. Quando, na década de 1990 (CAPUTI; RUSSELL, 1992), o femicÃÂdio surge como categoria de análise e é reformulado, na década de 2000 (LAGARDE, 2006A, 2006B), sob a terminologia de feminicÃÂdio, estas eram categorias que designavam apenas os homicÃÂdios praticados por homens contra mulheres cisgêneras, por motivação misógina. Neste caso, o feminino era compreendido como um ente biológico, algo inscrito na ordem da natureza.

    Com as conquistas do movimento feminista, do movimento transgênero (1) e, especificamente, do movimento feminista transgênero, que impingiram mudanças radicais nas concepções hegemônicas de gênero e sexualidade, a norma social que define o que é uma mulher sofre desestabilizações e amplia-se, na medida em que a mulher universal é questionada pelos diversos feminismos interseccionais. As fronteiras de gênero, hoje, apresentam contornos que não são mais tão claros, de modo que as definições do feminino e do masculino já não são tão óbvias quanto antes. Também com o avanço dos estudos de gênero no final da década de 1990, em especial pela incorporação de novas teorias do poder e da linguagem nesse campo teórico, o gênero desprende-se de seus aspectos biologizantes e passa a ser entendido como uma performance que se materializa no corpo, produzida por uma confluência de forças sociais.

    Nesse cenário, é particularmente relevante observar o surgimento, no âmbito dos movimentos sociais, dos conceitos utilizados para explicar e combater a violência que atinge os grupos vulnerabilizados pela sua identidade de gênero ou sexualidade. Os conceitos são utilizados não apenas como categorias de análise, mas, também, como armas de combate que objetivam a transformação da linguagem e da forma como os sujeitos se referem às relações sociais. Assim, possuem tanto uma função epistemológica quanto polÃÂtica.

    É sob essas bases que, neste escrito, explico como surge o conceito de transfeminicÃÂdio e a importância polÃÂtica de sua mobilização para explicar os assassinatos de travestis e mulheres sexuais. O conteúdo desse conceito articula uma noção sofisticada de justiça por reconhecimento e interpretações perspicazes sobre as assimetrias de poder que produzem as diferenças de gênero. Para isso, na primeira parte do texto, explicarei o que é feminicÃÂdio, como surge a categoria e a estratégia polÃÂtica do feminismo por trás desse conceito. Na segunda parte, explico como o movimento feminista transgênero utiliza o feminicÃÂdio como categoria de análise também para explicar os assassinatos de travestis e mulheres transexuais.

  2. Entendendo o conceito base: genealogia e potencialidades do conceito de feminicÃÂdio

    Este artigo destina-se a apresentar os homicÃÂdios de travestis e mulheres transexuais por razão de gênero como uma forma especÃÂfica de feminicÃÂdio, que ocorre tanto em razão do trânsito de gênero da vÃÂtima quanto da incorporação de um gênero apreendido como vulnerável (o feminino). Para melhor esclarecer essa proposição, todavia, precisa-se antes expor o que se entende por feminicÃÂdio, uma vez que essa é uma categoria jurÃÂdico-sociológica complexa e não autoexplicativa.

    Inobstante haja menções anteriores, o termo foi empregado apenas há pouco tempo no sentido que possui hoje, tendo sido utilizado pela primeira vez por Diana Russell em 1976, com a grafia femicÃÂdio, em seu discurso no Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, em Bruxelas. Nessa oportunidade, a autora utiliza o termo para descrever "o assassinato de ódio contra mulheres perpetrado por homens" (RUSSELL, 2011, tradução minha).

    O conceito só passa a ganhar densidade teórica, todavia, nos anos 1990. O pontapé inicial foi dado em 1992 com a publicação de uma antologia intitulada Femicide: The politics of woman killing, organizada por Jill Radford e pela própria Diana Russell. São mais de quarenta textos que refletem sobre a condição feminina e a experiência da violência, sobretudo analisando o assassinato de mulheres nos EUA e na Inglaterra. Essa obra é considerada um marco na produção acadêmica sobre o assassinato de mulheres e registra o inÃÂcio da efetiva utilização da categoria femicide (femicÃÂdio), só posteriormente traduzida para o espanhol como feminicidio (feminicÃÂdio).

    No livro, Jill Radford (1992, p. 3, tradução minha) conceitua femicÃÂdio como "o assassinato misógino de mulheres por homens" e Diana Russell já não entende mais a categoria como qualquer assassinato de mulher por um homem, mas sim como "o assassinato de mulheres por homens porque elas são mulheres" (RUSSELL, 2011, grifo da autora, tradução minha), representando um avanço teórico no sentido de diferenciar melhor o femicÃÂdio das demais motivações do homicÃÂdio. Uma vez que o termo surge para nomear a singularidade das mortes violentas de mulheres.

    Nessa perspectiva, a criação do conceito de femicÃÂdio (e feminicÃÂdio) para nomear uma forma especÃÂfica do crime de homicÃÂdio insere-se no mesmo âmbito da guerra pela nomeação. Denominar como femicÃÂdio os assassinatos de mulheres é importante, do ponto de vista epistemológico, para apontar suas singularidades. Além disso, no aspecto polÃÂtico, atribuir um nome ao fenômeno permite elaborar melhor um arsenal que facilite o combate às assimetrias de poder que produzem os assassinatos de mulheres por razões de gênero. Lógica que pode ser extraÃÂda das palavras da própria Diana Russell: "Você não pode se mobilizar contra algo que não tem nome" (BOIRA et al., 2016, p. 976).

    A elaboração de uma categoria teórica para descrever os assassinatos de mulheres põe em novos termos a forma de tratar esse fenômeno, uma vez que a recente denominação carrega consigo implicações polÃÂtico-epistemológicas relevantes, que se distinguem da maneira como o assunto é tratado pelo senso comum. O uso do termo femicÃÂdio é importante porque atribui ao gênero a razão determinante da violência a que a mulher sofre, passando a designar (nos moldes originais) os assassinatos praticados por homens contra mulheres, em virtude do desprezo pelo gênero feminino (CAPUTI; RUSSELL, 1992). Essa é uma forma muito especÃÂfica de morte violenta, que só se verifica em razão do lugar que o feminino possui nas sociedades em que o masculino é um locus privilegiado de poder.

    É por isso que, a partir de um ponto de um vista feminista, "Chamar de femicÃÂdio os assassinatos misóginos remove a veia obscura dos termos não-generificados como homicÃÂdio ou assassinato" (CAPUTI; RUSSELL, 1992, p. 15, tradução minha). E a principal função do conceito de femicÃÂdio acaba sendo exatamente essa: mostrar que o gênero é um fator decisivo nas mortes das mulheres, ainda que o número de homens mortos seja expressivamente maior ao redor do mundo. A elaboração do termo femicÃÂdio destaca a singularidade dos homicÃÂdios de mulheres, pondo no próprio radical o motivo desses atos: a vulnerabilidade da condição feminina. Nesse sentido, ser mulher permite a violação de seu corpo pela violência, normalmente justificada por razões como ciúmes, traição, honra etc. Utilizar o termo femicÃÂdio é dar visibilidade a esse fenômeno recorrente e, ao mesmo tempo, atribuir a ele uma carga valorativa a partir de uma perspectiva feminista, a qual sustenta que o assassinato de mulheres não é uma questão moral ou passional, nem mesmo acidental. Antes, é um produto das assimetrias de poder que atravessam o gênero enquanto elemento relevante na constituição das relações sociais, em que ao masculino é dado o domÃÂnio do corpo feminino.

    No campo da motivação, as teóricas feministas creditam a violência contra a mulher por razões de gênero àestrutura de poder que, em momentos especÃÂficos, dá o acesso do corpo feminino ao outro (seja homem, seja outra mulher). Trata-se de uma violência que surge pelo exercÃÂcio de um poder especÃÂfico, em uma relação de assimetria entre os sujeitos provocada pelo gênero (enquanto elemento das formações sociais). Com efeito, a questão do poder perpassa toda a produção teórica sobre o assassinato de mulheres e encontra aàum campo fértil de análise, de modo que diversas autoras chegam a entender esses assassinatos como "crimes de poder" (SEGATO, 2006, p. 4). Mais precisamente, trata-se de "crimes cuja dupla função é, neste modelo, simultaneamente, a retenção ou manutenção e a reprodução do poder" (SEGATO, 2006, p. 4, tradução minha). O homicÃÂdio de mulheres por razão de gênero é...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT