Tributo: Verdadeiro E Ilegítimo Instrumento De Poder - Terceira Geração Do Controle Social

AutorIldo Fucs
Páginas84-120
1. Introdução
As linhas mestras que inauguram as reflexões depositadas aqui neste
Capítulo, talvez, o cerne teórico e mais espinhoso deste trabalho, pois
como diria William Blakeo prazer engravida, mas só o sofrimento faz pa-
rir88, evocam, irremediavelmente, ao magistral pensador contemporâ-
neo Michel Foucault, especialmente em um fragmento específico de sua
obra imperdível Vigiar e Punir89, quando descreve, em cruel, mas impor-
tante relato, a execução do condenado Damiens, na praça de La Grève,
em Paris, França do Séc. XVIII.
Tal descrição necessita ser reproduzida em termos literais, malgrado
não se objetive criar qualquer mal-estar ao leitor, pois o que se busca
viabilizar é a concatenação teórica e lógica do presente texto, haja vista
o início, neste pensar, de outra viagem, desta vez intelectual e teórica,
sobre a evolução da aplicação da pena e seus consectários deletérios ao
cidadão, abrindo-se mão, desta vez, da companhia imaginária dos Zor-
gons em Zathura, sabendo-se, inclusive, que esta passagem imprimirá um
contexto muito mais desumano, cruento e severo à comunidade leitora
do que uma hipotética invasão dos sáurios espaciais alienígenas.
[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publi-
camente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser]
levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma
tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça
de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos ma-
milos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a
faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre,
e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo
fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a
seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus
membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas
lançadas ao vento.
Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última
operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afei-
tos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e
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como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do
infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas...
Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador,
nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas
faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: “Meu Deus, ten-
de piedade de mim; Jesus, socorrei-me”. Os espectadores ficaram todos
edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua
idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente.
[O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo
era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois,
um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas
tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de
comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a
coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida
os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificul-
dade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas
ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em
cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.
Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfe-
mar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou uma colher
de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente
sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas
destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada
membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços.
O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente
para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso
dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos a
ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor”.
Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de vez
em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas
pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inex-
primíveis. O senhor Le Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou
se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores
e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe
apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor”.
Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha
reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde,
a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os
cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas
voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas.
Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava
a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrela-
dos às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum.
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Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia nem
esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se
desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de
volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi
feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje.
Tendo voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-
o falar): “Beijem-me, reverendos”. O senhor cura de Saint-Paul não teve
coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo
e beijou-o na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que
não blasfemassem, que cumprissem seu ofício, pois não lhes queria mal
por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura
de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa.
Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia
atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas
na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda
força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por
primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com
as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até
quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o
braço direito primeiro e depois o outro.
Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe
falar; mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na ver-
dade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como
se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que,
assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda
estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos,
foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do
patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos
de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha. ... Em cumprimento
da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas
brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de
carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os ofi-
ciais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros
formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos
onze horas.
Alguns pretendem tirar conclusões do fato de um cão se haver deitado no
dia seguinte no lugar onde fora levantada a fogueira, voltando cada vez
que era enxotado. Mas não é difícil compreender que esse animal achasse
o lugar mais quente do que outro. (Grifo nosso)
A crueldade fiscal imposta ao cidadão é a mesma e até mesmo mais
sórdida, permessa venia, pois evoca controles subliminares, não evidentes,
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