Trinta e cinco anos da constituição de 1988: as voltas que o mundo dá

AutorLuis Roberto Barroso
CargoProfessor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ? UERJ. Professor do Centro Universitário de Brasília ? UniCeub. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre pela Yale Law School. Senior Fellow na Harvard Kennedy School.
Páginas7-49
Rev. direitos fundam. democ., v. 28, n. 2, p. 07-49, mai./ago. 2023.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd v28i22697
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
TRINTA E CINCO ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: AS VOLTAS QUE O MUNDO
THIRTY-FIVE YEARS OF THE 1988 CONSTITUTION: THE TURNS THE WORLD TAKES
Luís Roberto Barroso
Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro UERJ. Professor do Centro Universitário de Brasília UniCeub.
Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre pela Yale Law School. Senior
Fellow na Harvard Kennedy School.
RESUMO
O artigo que se segue está dividido em três partes e uma conclusão. Na
Parte I, procura-se resgatar os fatos históricos que antecederam a
convocação da Assembleia Constituinte que resultou na Constituição de
1988. A Parte II analisa as mudanças trazidas pela nova Carta Política,
especialmente em relação aos Poderes da República, bem como as
transformações da teoria constitucional brasileira ao longo do período. A
Parte III avalia os sucessivos governos pós-1988, as principais emendas
feitas à Constituição e alguns dos momentos críticos atravessados nesses
trinta e cinco anos de vigência. Ao final, a Conclusão do texto procura
apresentar uma agenda para o Brasil, que inclui itens que vão do combate
à pobreza até a prioridade máxima para a educação básica, passando pela
volta ao crescimento econômico e o investimento em ciência e tecnologia.
Apesar de alguns sustos e frustrações, há boas razões para celebrar os 35
anos da Constituição de 1988 e a consolidação da democracia constitucional
brasileira. Sem embargo de uma longa jornada pela frente.
Palavras-chave: Constitucionalismo; História Constitucional Brasileira;
Constituição de 1988; Democracia Constitucional.
ABSTRACT
The following article is divided into three parts and a conclusion. Part I seeks
to recount the historical facts that preceded the convening of the Constituent
Assembly which led to the 1988 Constitution. Part II analyzes the changes
brought about by the new Political Charter, especially regarding the three
branches of government, as well as the transformations of Brazilian
constitutional theory over the period. Part III evaluates the post-1988
governments, the main amendments to the Constitution, and some of the
critical moments experienced during its thirty-five years in force. The
Conclusion of the text presents an agenda for Brazil, encompassing various
issues, from the fight against poverty to prioritizing basic education, passing
LUIS ROBERTO BARROSO
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through fostering economic growth and investing in science and technology.
Despite some scares and frustrations, there are good reasons to celebrate
the 35th anniversary of the 1988 Constitution and the consolidation of
constitutional democracy in Brazil. There is also a long journey ahead.
Keywords: Constitutionalism; Brazilian Constitutional History; Constitution
of 1988; Constitutional Democracy.
I. INTRODUÇÃO
Vai se tornando um ritual, na minha vida, escrever artigos por ocasião dos
aniversários emblemáticos da Constituição de 1988. Em cada um desses textos, procuro
narrar as realizações e frustrações do período, bem como capturar o estado de espírito do
momento. Aos dez anos da Carta, em tom otimista, sob o subtítulo “Foi bom pra você
também?”, celebrei a travessia bem-sucedida de uma longa ditadura de quase um quarto
de século para um Estado democrático de direito. Aos vinte anos, sob o subtítulo “O Estado
a que chegamos”, fiz um paralelo com os 200 anos da vinda da família real para o Brasil,
registrando os avanços que havíamos conseguido como nação, ao longo de dois séculos.
Quando a Constituição completou trinta anos, em “A República que ainda não foi”, procurei
contabilizar avanços e revezes, que incluíam conquistas nos direitos fundamentais e a
crônica apropriação privada do espaço público no Brasil.
Agora, aos trinta e cinco anos, é impossível não comemorar a vitória da democracia
e das instituições sobre as maiores ameaças ocorridas desde o fim do Regime Militar.
Foram tempos de sobressaltos e temores de retrocesso. Mas precisamos cicatrizar feridas
e fazer com que pessoas que pensam de forma diferente possam sentar-se à mesma mesa
e discutir os caminhos do país. É preciso paz, harmonia e um projeto de futuro, para
voltarmos a crescer de maneira consistente, como fizemos na maior parte do século
passado, e podermos distribuir renda para o enfrentamento da pobreza e das
desigualdades injustas. O texto que se segue procura recuperar a memória dos
antecedentes da Constituição, analisar e avaliar as promessas e mudanças por ela
introduzidas e narrar o seu desempenho no mundo real ao longo desses trinta e cinco anos
e sete presidentes. Ao final, procuro apresentar uma agenda consensual e construtiva para
o Brasil.
PARTE I - REVIVENDO O PASSADO: ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA
CONSTITUIÇÃO
I. DO GOLPE DE 64 AO ATO INSTITUCIONAL Nº 5/68
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TRINTA E CINCO ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ...
Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, um golpe de Estado
destituiu João Goulart da presidência da República, cargo que veio a ser ocupado, dias
depois, pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, Marechal Castelo Branco1. Não se tratou
de um Movimento ou de uma Revolução, mas de um Golpe, que é o nome que se dá em
ciência política e em teoria constitucional para as situações em que o chefe de governo é
afastado por um procedimento que não é o previsto na Constituição. As palavras precisam
ser preservadas em seus sentidos mínimos. Fatos objetivos não podem se desvirtuar em
narrativas fictícias. A partir da terminologia correta e da realidade incontroversa, cada um
pode desenvolver a interpretação e opinião que corresponder à sua visão de mundo, no
pluralismo que caracteriza as sociedades abertas e democráticas.
É certo, também, que o golpe contou com o apoio de inúmeros setores da
sociedade, não majoritários, mas expressivos, como boa parte das classes empresariais,
dos produtores rurais, da classe média e da Igreja, assim como dos militares e da Imprensa,
além dos Estados Unidos. Cada um desses atores com seus temores próprios: a República
Sindicalista, as Reformas de Base, a Reforma Agrária, as Ligas Camponesas, o
comunismo, a desordem, a quebra da hierarquia nas Forças Armadas, a justiça social etc.
No geral, os apoiadores acreditavam que o regime de exceção só duraria até o final do
mandato de João Goulart e que as eleições de 1965 se realizariam normalmente. Para
justificar o golpe e procurar demonstrar sua legitimidade, os novos donos do poder os
comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica editaram o Ato Institucional de 9
de abril de 19642. Foi o primeiro de uma longa série de 17 atos de exceção.
A ditadura começou a se desenhar com a prorrogação do mandato de Castelo
Branco. Embora a medida tenha sido aprovada por emenda constitucional, tratava-se de
um Congresso cujos integrantes estavam ameaçados de cassação. Com a prorrogação, foi
1 Humberto de Alencar Castelo Branco tomou posse em 15.04.1964. Foi “eleito” pelo Congresso Nacional
com maioria expressiva, inclusive com o voto do ex-Presidente Juscelino Kubitschek. Tal apoio não impediu
que JK viesse a ser cassado em 8 de junho de 1964. Juscelino era o candidato favorito nas eleições que não
se realizaram, em 1965.
2 Assim dispunha o preâmbulo do ato que veio a ser conhecido, posteriormente, como Ato Institucional nº 1,
em razão da sucessão de outros Atos Institucionais: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais
radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.
Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força
normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela
normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e
ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o
Povo é o único titular.

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