A tutela do direito de propriedade no Estado de Direito: os padrões europeus de respeito aos direitos fundamentais / The protection of property rights in the Rule of Law: european standards of respect for fundamental rights

AutorPatrícia Silva Cardoso, Francesca Benatti
CargoProfessora de Direito Civil da Universidade Federal Fluminense (UFF) ? Brasil. Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em co-tutela com a Università degli Studi di Roma ? La Sapienza. E-mail: patriciacardoso@id.uff.br - Professora de Direito Privado Comparado da Università degli Studi di Padova ? Itália. Doutora...
Páginas666-699
Revista de Direito da Cidade vol. 09, nº 2. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2017.28330
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Revista de Direito da Cidade, vol. 09, nº 2. ISSN 2317-7721 pp. 666-699 666
A TU TE LA DO D IRE IT O D E PRO PR IE DA DE NO ES TA DO DE D IRE IT O: OS P ADR ÕE S
EUR OP EU S DE R ESP EI TO A OS DIR EI TO S FUN DA M EN TA IS
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STA ND AR DS O F RE SP ECT F OR F UNDAME NT AL R IGH T S
Pa tr íc ia S ilva Cardo so 1
Fra nc es ca B ena tt i2
Resumo
O objetivo do presente artigo é explorar o reconhecimento e a proteção da propriedade privada
como di reito fundamental e sua relação com a noção de garantia da propriedade nas
constituições democráticas. A conexão entre nível de tutela conferida ao direito de propriedade
e a democracia se tornou um critério para avaliar o estado da democracia de um país em
diversos organismos internacionais. Tendo em vista que a garantia propriedade privada é
considerada um importante elemento de proteção do indivíduo contra o Estado, pretende-se
aprofundar as construções teóricas que associam a tutela da propriedade privada a um maior
nível de desenvolvimento democrático. Com tal intuito, serão analisados os padrões do Estado
de Direito estabelecido na Europa, marcado pela democracia e pelo respeito aos direitos
fundamentais do indivíduo, com especial ênfase à tutela da propriedade e stabelecida pelos
órgãos do Conselho da Europa, como a Comissão de Veneza para a De mocracia através do
Direito e a Corte Europeia de Direitos do Homem.
Palavras-chave: propriedade privada; democracia; garantia constitucional; Estado de Direito.
Abstract
The essa y ana lyses the recognition and protection of private pr operty as a fundamental right
and it focuses on its relation to the notion of constitutional guarantee of property established in
the cons titutions of democratic countries. The connection between the level of protec tion of
property rights and democracy and its protection has become the criterion for assessing the
state of a country's democracy in various international bodies. Considering that the guarantee
of private property is considered an important element of protection of the individual against
the State, we intend to deepen the theoretical constructions that a ssociate the tutelage of
private property with a higher level of democratic de velopment. To this end, the essay
examines the standards of the rule of law established in Europe, marked by democracy and
respect for the fundamental rights of the individual, with particular emphasis on the protection
of property established by Coun cil of Europe bodies such as the Venice C ommission f or the
Democracy through Law and the European Court of Human Rights
Keywords: private property, democracy, constitutional guarantee, Rule of Law
1 Professora de Direito Civil da Universidade Federal Fluminense ( UFF) Brasil. Doutora em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em co-tutela com a Un iversità degli Studi di Roma La
Sapienza. E-mail: patriciacardoso@id.uff.br
2 Professora de Direito Privado Comparado da Università degli Studi di Padova Itália. Doutora em Direito
Privado Comparado pela Università degli Studi di Pavia. E-mail: francesca.benatti@unipd.it
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DOI: 10.12957/rdc.2017.28330
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IN TR OD ÃO
O direito de pr opriedade privada é atualmente reconhecido, ainda que com limites
determinados pelo interesse social,3 pelas Constituições de quase todos os Estados e pela
Cartas internacionais. Todavia, a sua concreta conformação e proteção são influenciadas por
números fatores de natureza social, filosófica, política, jurídica e econômica. Inobstante a
diferença entre a sua qualificação no direito constitucional, inter nacional e privado, para o
jurista impõe-se, sobretudo, a necessidade de uma definição que não pode ser atribuída à
tradição.4
Salienta Pugliatti que a utilidade do conc eito legal de propriedade não pode ser negada
                
da conciliação de exigências teóricas e práticas que são abrangidas pela sistemática dos
conceitos criados pelo Direito Positivo. Tais conceitos tiveram a sua utilidade e legitimidade
testadas no suceder dos anos e da s gerações, precisamente a partir do empreg o e do bom uso
no suceder dos anos e das gerações.5
Cabe ainda frisar que o direito de propriedade não é concebido de modo isolado, mas
dentro do sistema de dire itos reais. Contudo, este é também um símbolo, pois as instituições
 não apenas regulam a complexidade da interação humana, mas também moldam
o caráter dessas interações.6
O modo como a lei regula o direito de propriedade revela os valores mais profundos de
uma sociedade, pois não se refere apenas à alocação de recursos escassos, à informação ou à
complexidade, tratando-   a vida, a liberdade e a busca da felicidade7 A
propriedade refere-se à ordem social, pois reflete a concepção do que significa viver numa
sociedade livre e democrática que trata cada pessoa com igu al preocupação e respeito. Em tal
perspectiva, o direito de propriedade é estreitamente ligado com a ideia de democracia.8
3 Pode-se citar como exemplos as Constituições brasileira e italiana.
4 A observação aplica-se aos ordenamentos de Civil Law, baseados nas categorias do Direito Romano. Na
Common Law, a law of property tem origem no sistema feudal.
5 PUGLIATTI, Salvatore. La proprietà nel nuovo diritto, Milano: Giuffrè, 1954, p. 147.
6 SINGER, Joseph W. Property as the law of Democracy, In: Duke Law Journal, vol. 63, n°. 6, 2014, p. 1299.
7 Idem. p. 1299.
8 Note-se que a mesma noção de democracia seja hoje complexa e de difícil definição. Sobre uma
ilustração dos diversos modelos ver: HELD, David. Models of Democracy. Cambridge/Malden: Polity Press,
2006.
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PR OP RI ED AD E PRI VADA E DEMOC RA CI A: U MA APR OX IM ÃO A O DE BA TE .
O debate sobre o papel do desenvolvimento econômico na instauração e na
consolidação de uma democracia é atual e polêmico. Indaga-se s obre a relação que se
estabelece entre estes dois vetores: se o desenvolvimento econômico g era a democracia ou se,
ao contrário a democracia constitui a base necessária para o progresso; ou ainda, se é possível
configurar uma diversa correlação não abrangida pelas duas primeiras.
A questão proposta se coloca numa linha teórica distinta da indagação sobre a natureza
do sistema econômico, todavia, a reflexão sobre o tema implica uma breve digressão sobre o
modelo preferível para incentivar o crescimento. De fato, desde Aristóteles tem-se frisado que
apenas uma situação de bem-estar pode garantir uma participação ativa dos cidadãos na vida
pública e impedir a tomada de poder por parte de oligarquias e ditadores.9
A partir dos anos sessenta do século passado, estudos empíricos procuraram
demonstrar que o dese nvolvimento econômico é um fator facilitador de transições
democráticas bem-sucedidas em países anteriormente autoritários.10 Segundo Daniel Lerner,
expoente dos estudos sobre o desenvolvimento no p eríodo supramencionado, a evolução
geralmente ocorre em três fases.11 A primeira inclui a urbanização progressiva, na qual
emergem os elementos estruturais da sociedade industrializada. Posteriormente, como
consequência, há o crescimento da alfabetização e da cultura, que caracterizam a segunda fase,
até que se caminhe para a exigência de uma informação de massa, próxima etapa. Apenas na
última fase pode-se instaurar um sistema democrático.
As razões para tal raciocínio são inúmeras. Inicialmente, entende -se que a
industrialização determina uma difusão, até mesmo para fora do Estado e de seus órgãos, de
riquezas e de poderes,12 o que traz mudanças na estrutura da sociedade e nos seus valores.
9 LIPSET, Seymour Martin. Some Social Requisites of Democracy: Economic Development and Political
Legitimacy. In: The American Political Science Review. vol. 53, n°. 1, march.,1959, p. 69. Disponível em:
tsky/files/lipset_1959.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2017.
10 Observe-se-se que não é suficiente que haja uma transição democrática, mas também que essa gere
uma democracia estável. Cf. KAPSTEIN, Ethan B; CONVERSE, Natan. Why Democracies Fail. In: Journal of
Democracy, vol. 19, n°. 4, october, 2008, p. 57. Disponível em:
fault/files/19.4.kapstein.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2017.
11 LERNER, Daniel. The passing of traditional society, Glencoe: Free Press, 1958, p. 60 ss.
12 HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave. Democratization in the L ate Twentieth Century. Oklahoma:
University of Oklahoma Press, 1993, p. 65.

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