A tutela jurídica da privacidade e do sigilo na era digital: doutrina, legislação e jurisprudência
Autor | Ana Paula Oliveira Avila, André Luis Woloszyn |
Cargo | Professora Titular de Direito Constitucional do UniRitter ? Laureate International Universities (Porto Alegre-RS, Brasil)/Mestre em Direito pelo UniRitter ? Laureate International Universities (Porto Alegre-RS, Brasil). Analista de Inteligência na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) |
Páginas | 167-200 |
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Como citar esse artigo/How to cite this article: ÁVILA, Ana Paula Oliveira; WOLOSZYN, André Luis. A tutela jurídica da privacidade
e do sigilo na era digital: doutrina, legislação e jurisprudência. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 3.
p. 167-200, set./dez. 2017. DOI: 10.5380/rinc.v4i3.51295.
* Professora Titular de Direito Constitucional do UniRitter – Laureate International Universities (Porto Alegre-RS, Brasil). Doutora
e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: anapaula.avila@icloud.com.
** Mestre em Direito pelo UniRitter – Laureate International Universities (Porto Alegre-RS, Brasil). Analista de Inteligência na
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE). E-mail: alwi.war@gmail.com.
Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: 10.5380/rinc.v4i3.51295
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Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 3, p. 167-200, set./dez. 2017.
A tutela jurídica da privacidade e do sigilo na era
digital: doutrina, legislação e jurisprudência
Legal protection of privacy and condentiality in the
digital era: doctrine,legislationand jurisprudence
ANA PAULA OLIVEIRA ÁVILA*
UniRitter – Laureate International Universities (Brasil)
anapaula.avila@icloud.com
http://orcid.org/0000-0001-5430-3099
ANDRÉ LUIS WOLOSZYN**
UniRitter – Laureate International Universities (Brasil)
alwi.war@gmail.com
Recebido/Received: 19.03.2017 / March 19th, 2017
Aprovado/Approved: 18.07.2017 / July 18th, 2017
Resumo
O presente artigo trata da tutela constitucional do sigilo
de dados e das comunicações na web face aos direitos à
privacidade e à intimidade dos usuários. Analisa o trata-
mento dispensado a este sigilo na doutrina, na legislação
e na jurisprudência brasileira, examinando a Lei de Inter-
ceptação Telefônica, a Lei Complementar 105/2001 e o
Marco Civil da Internet e, após, as divergências jurispru-
denciais acerca da matéria, particularmente nas decisões
do Supremo Tribunal Federal. Conclui-se que as normas
existentes no ordenamento jurídico brasileiro não são
sucientemente claras e objetivas com relação às novas
tecnologias de comunicação eletrônicas e digitais, fator
Abstract
The present articleanalyzesthe constitutional protection of
data condentiality and the communications on the web in
the light of the rights to privacy and to intimacy of the users.
It aims at analyzing the treatment given to condentiality in
the Brazilian doctrine, legislation and jurisprudence, exami-
ning the Telephone Interception Law, the Lei Complementar
105/2001 and the Brazilian Civil Rights Framework for the
Internet and, also, the jurisprudential dierences concer-
ning the subject, focusing on decisions from the Brazilian
Supreme Court. It was concluded that the existing norms in
the Brazilian legal system are not suciently clear and ob-
jective regarding new technologies of electronic and digital
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Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 3, p. 167-200, set./dez. 2017.
que contribui para a ocorrência sistemática de abusos e
violações e, consequentemente, para a redução da ecá-
cia plena de proteção a estes direitos fundamentais.
Palavras-chave: Direitos humanos; sigilo; privacidade;
hermenêutica constitucional; era digital.
communication, a factor that contributes for the systematic
occurrence of abuses and violations; and, consequently, for
the reduction of the full eectiveness to protect these fun-
damental rights.
Keywords: Human rights; condentiality; privacy; consti-
tutional interpretation; digital era.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Vida privada e intimidade: conguração; 2.1. Uma questão de direitos humanos e fun-
damentais; 2.2. Privacidade, intimidade, sigilo: estremando conceitos; 3. A tutela jurídica do sigilo no
Brasil; 3.1. A proteção constitucional; 3.2. A legislação infraconstitucional; 4. Privacidade e sigilo nos
tribunais; 5. Considerações nais; 6. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
No nal dos anos 90, Manuel Castells anteviu com clareza que a internet seria,
nas décadas seguintes, o mais importante canal de interconexão global, armando que
quase tudo estaria conectado a sistemas invariavelmente abertos a pessoas e institui-
ções.1 O avanço da tecnologia digital nas duas últimas décadas pelo incremento de no-
vas e múltiplas formas de comunicação na web é, de fato, a grande marca do século XXI.
O acesso instantâneo, a praticidade no uso de aplicativos para celulares, a transmissão
de mensagens texto, o uso do e-mail, da voz via internet, o armazenamento de quan-
tidades signicativas de dados pessoais e informações constitui-se em uma revolução
na história da humanidade.
Essa realidade, contudo, potencializou paradoxos e inúmeros desaos para a ci-
ência jurídica em geral e para os direitos humanos, em particular, denidos como um
conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar a vida do ser humano baseada
na liberdade, igualdade e dignidade.2 Nesta perspectiva, a vulnerabilidade dos usuá-
rios cresceu na mesma proporção da inovação tecnológica, especialmente em relação à
vida privada e à intimidade, possibilitando a violação ou a quebra de sigilo de qualquer
tipo de comunicações ou dados, sejam eletrônicos ou digitais, retirando seu preten-
so caráter privativo. Essa vulnerabilidade apresenta-se, de um lado, no plano fático: o
trânsito de informações pela rede aumenta a invasão de e-mails, correspondências e
telefonemas indesejados a endereços privativos do usuário, e aplicativos inteligentes
assimilam as preferências comerciais, rotinas, e até os trajetos diários dos usuários de
tecnologia.
1 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 69
2 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 19.
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A tutela jurídica da privacidade e do sigilo na era digital: doutrina, legislação e jurisprudência
Com efeito, o resumo do relatório do Centro Criptológico Nacional da Espanha
(CCN) que trata das ciberamenazas mundiais 2015/ tendências 2016, distribuído a todos
os centros de estudos tecnológicos internacionais, estima que:
En los próximos anõs, el volumen y los datos personales que se reconpilarán abarcará
todo tipo de información personal: nombre, dirección, número de teléfono, correo ele-
trónico, historial de compras, sitios más visitados, comportamientos cotidianos (lo que
comemos, vemos y escuchamos), nuestro peso, pressión sanguínea, medicación, hábitos
de sueño o el ejercicio que hacemos que tendrá um enorme valor económico. Las infor-
maciones poderán hacerse por acuerdos consentidos o por medios ilícitos.3
Essa vulnerabilidade também foi agravada no plano jurídico, âmbito em que a
vida privada e a intimidade das pessoas tem experimentado frequente relativização –
inclusive nas mais altas instâncias do Poder Judiciário, encarregadas da proteção dos
direitos e garantias fundamentais individuais. Tome-se como ilustração as decisões ju-
diciais que, nos últimos anos, produziram as seguintes orientações: (a) não se considera
atentatório à privacidade e à intimidade dos servidores públicos o acesso do público às
informações relativas ao valor dos seus vencimentos (STF, CNJ); (b) está dispensada a
autorização do biografado (que era legalmente requerida pelo Código Civil) para a pu-
blicação de sua biograa por terceiros (STF); (c) o empregador pode acessar os e-mails
da conta corporativa do empregado (TST); e (d) mais recentemente, em fevereiro de
2016, reconheceu-se a possiblidade de acesso, pela Receita Federal, a dados bancários
dos contribuintes independentemente de autorização judicial. Noutra banda, a CPI dos
Crimes Cibernéticos, que recentemente divulgou seu relatório nal, propõe que a iden-
tidade de qualquer usuário por trás de um número IP seja revelada pelos provedores de
internet à polícia e ao Ministério Público sem a necessidade de ordem judicial.
Parece, assim, claro que as restrições à privacidade e à intimidade podem ocor-
rer tanto por parte de governos e instituições públicas, como de empresas privadas,
ou mesmo de hackers, pessoas comuns que dominem essas tecnologias – e para tanto
apropriam-se dos conhecimentos disponíveis na própria rede. O problema acentua-se
com a popularização desses meios, somados à dinâmica evolução tecnológica que se
mostra signicativamente maior do que a capacidade do ser humano em absorvê-la.
Neste contexto, Gagliano assim se manifesta:
Com o avanço tecnológico, os atentados à intimidade e à vida privada, inclusive por
meio da rede mundial de computadores (Internet), tornaram-se muito comuns. Não
3 Centro Criptográco Nacional da Espanha CNN CERT IA – 09/16, Ciberamenazas 2015/tendências 2016. p. 30.
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