Um Direito Administrativo de Transição: o conceito de direito administrativo na cultura jurídica da Primeira República Brasileira (1889-1930)

AutorWalter Guandalini Junior/Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima Teixeira
CargoUniversidade Federal do Paraná, Curitiba - PR, Brasil/Centro Universitário Internacional, Florianópolis - SC, Brasil
Páginas422-459
Um Direito Administrativo de Transição:
o conceito de direito administrativo na
cultura jurídica da Primeira República
Br asil eira (1889-1930)
A Transition Administrative Law: the concept of administrative
law in the Brazilian First Republic’s legal culture (1889-1930)
Walter Guandalini Junior*
Universidade Federal do Paraná, Curitiba – PR, Brasil
Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima Teixeira**
Centro Universitário Internacional, Florianópolis – SC, Brasil
1. Introdução: a recepção do direito administrativo pela
cultura jurídica brasileira
As mais recentes pesquisas sobre a história do direito administrativo brasi-
leiro têm contribuído para uma revisão geral do papel desempenhado pela
disciplina no processo de formação do Estado nacional. Tradicionalmente
a doutrina administrativista se limitava a transpor para a realidade brasilei-
ra a história do direito administrativo europeu, encontrando na jurispru-
dência do Conselho de Estado francês as suas origens remotas1; mesmo
*Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor
de História do Direito na Faculdade de Direito da UFPR e no Mestrado em Direito do Centro
Universitário Internacional (Uninter). Advogado na Companhia Paranaense de Energia. E-mail:
prof.walter.g@gmail.com.
**Mestre em Direito pelo Centro Universitário Internacional (Uninter). E-mail: liviasolana@
gmail.com.
1 É o que fazem, apenas para citar alguns dos mais notórios administrativistas brasileiros, BAN-
DEIRA DE MELLO, 2007, CRETELLA JR., 1989, DI PIETRO, 2005, GASPARINI, 1993 e MEI-
RELLES, 2008.
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estudos mais recentes, ainda que declaradamente dedicados a um esforço
de compreensão histórica do processo de formação da teoria do direito ad-
ministrativo, têm sua visão limitada pela falta de atenção ao contexto social
em que circulava o discurso científico, o que as leva à insuficiente conclu-
são de que as nossas primeiras obras “se inspiram no pensamento francês”
mas produzem análises meramente “pessoais e descritivas” quando se trata
de examinar o direito brasileiro2.
Contrariando as conclusões encontradas pelas perspectivas excessiva-
mente focadas na da dogmática jurídica, as pesquisas jus-históricas3 têm
descoberto a originalidade da tradução realizada por nossa cultura jurídica
durante o trabalho de recepção do conceito importado da Europa. Como
se tem demonstrado4, o esforço de adaptação do conceito exógeno às pe-
culiaridades da realidade local no século XIX leva a doutrina brasileira à
construção de uma nova concepção de direito administrativo, dotada de
características peculiares e apta a desempenhar uma função distinta da que
cumpria em seu ambiente de formação: obrigada a construir um conceito
científico sem qualquer referência jurisprudencial, e assim a extrair a sua
autonomia da caracterização de um objeto de estudo específico consistente
na organização da estrutura administrativa do Estado e das suas relações
com particulares; atenta às circunstâncias da realidade local, e por isso
consciente da impossibilidade de exigir autonomia absoluta da adminis-
tração em relação aos demais poderes; e obrigada a enfrentar o problema
da legitimidade do governo imperial no contexto de ruptura com a ordem
política tradicional após a independência, a doutrina brasileira produz um
conceito de direito administrativo voltado ao cumprimento de uma função
constituinte, atuando como elemento de fundação do Estado brasileiro, e
contribuindo com o direito constitucional no trabalho de fortalecimento
da autoridade central como alicerce legítimo para a edificação e a conser-
vação do Estado nacional. O resultado dessas pesquisas foi sintetizado no
quadro transcrito abaixo5:
2 ALMEIDA, 2015, p. 214.
3 GUANDALINI JR., 2015, 2016, 2018a, 2018b; TEIXEIRA, 2019.
4 GUANDALINI JR., 2018a, p. 33.
5 GUANDALINI JR., 2018a, p. 34.
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na cultura jurídica da Primeira República Brasileira (1889-1930)
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Quadro 1: Diferenças entre o conceito europeu e o conceito brasileiro de direito
administrativo no século XIX
Conceito Europeu Conceito Brasileiro
origem jurisprudencial origem científica
competência judicial específica objeto de estudo específico
autonomia absoluta da administração interferência da justiça e da política
na administração
finalidade de disciplinamento
urbano para o atendimento do
interesse coletivo
finalidade de satisfação das
necessidades populares para a
conservação do governo imperial
função administrativa função constituinte
objetivo econômico e militar objetivo político de legitimidade
fortalecimento dos Estados europeus no
contexto de competição internacional
fundação do Estado brasileiro
no contexto de ruptura da ordem
política tradicional
O presente estudo pretende dar continuidade às pesquisas realizadas
sobre o período imperial, buscando avaliar os resultados do diálogo estabe-
lecido pela cultura jurídica brasileira da Primeira República com a doutrina
administrativista europeia do período. A transposição dos limites cronoló-
gicos da pesquisa para o início do século XX gera algumas complexidades
adicionais em relação à pesquisa anterior, que deverão ser levadas em con-
sideração para a adequada compreensão do seu objeto: em primeiro lugar,
a complexidade decorrente do fato de que no início do século XX a cultura
jurídica brasileira não se relacionava somente com a ciência europeia do
direito administrativo, mas também com a própria tradição jurídica nacio-
nal, fosse para reiterar, fosse para desautorizar as conclusões adotadas no
século anterior. Em segundo lugar, também a complexidade decorrente do
fato de que a própria doutrina europeia sobre o direito administrativo já
tinha uma longa história e havia passado por profundas transformações na
etapa final do século XIX, o que obrigou a cultura jurídica local a se rela-
cionar tanto com o pensamento jurídico então vigente na Europa, quanto
com o de seus antepassados, reavaliando os limites das suas dívidas para
com os pais fundadores da disciplina.
Walter Guandalini Junior
Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima Teixeira

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