Um gesto de leitura na discursividade do objeto constituição/A reading gesture in the discursivity of the constitution as an object.

AutorMoura, Iago

Introdução

Há, sem dúvida, em nossa sociedade e, imagino, em todas as outras, mas segundo um perfil e facetas diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aàde violento, de descontÃÂnuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso. Michel Foucault (1) Crise do direito. Crise jurÃÂdica. Crise da constituição. Crise constitucional. Crise hermenêutica. Crise da hermenêutica. Crise da jurisdição. Crise do judiciário. Crise democrática. Crise de legitimidade democrática. Crises da democracia. (2) Sob a diversidade e proliferação dessas formas que tocam numa série, perpetuamente reorganizável, de objetos paradoxais, funcionando "[...] em relações de força móveis, em mudanças confusas, que levam a concordâncias e oposições extremamente instáveis" (PÊCHEUX, 2015a, p. 116), tais como: direito, constituição, hermenêutica, interpretação, judiciário, democracia etc., parece se instalar, em nossa ontologia do presente, (3) um espécie de temor apocalÃÂptico quanto àinstabilidade imaginária do chamado Estado democrático de direito.

No cerne dessa problemática, perguntas--tais como: o que (não) diz a constituição? O que (não) quis dizer o constituinte? O que (não) deve dizer o juiz sobre a constituição? O que é uma constituição?--entrecruzam-se, repetem-se e movimentam identificações e tomadas de posição distintas, em discussões acaloradas na Suprema Corte, no campo das mÃÂdias televisivas e digitais, dentre outros espaços enunciativos, pondo em jogo a eficácia material da ilusão de que, no jurÃÂdico, tudo já tem sentido e isso não constitui problema algum.

sob a tentativa de contribuir com a instalação de uma escuta materialista desses sentidos, cuja opacidade é visibilizada a partir de um gesto de leitura, que este texto se articula e propõe as suas questões. Isso numa conjuntura em que os dizeres constitucional e sobre constituição suscetibilizam a agudização e o alarido do que pode e deve significar ser sujeito e, a um só tempo, ser falante em uma formação social como a nossa.

Proponho aqui três movimentos. Num primeiro momento, discorrerei, brevemente, sobre algumas das possÃÂveis relações entre direito e linguagem. Num segundo, sobre a prática discursiva jurÃÂdico-doutrinária. Num terceiro, finalmente, construirei o meu gesto de análise, a partir do funcionamento discursivo de alguns enunciados definitórios materializados em dizeres classificatórios sobre constituição.

Tentarei, por meio do dispositivo discursivo-analÃÂtico de leitura, (4) suscetibilizar os efeitos de uma prática compreensiva que vise àdeslocalização tendencial do sujeito enunciador, através de um desregramento que, sistemático, trata de desfazer e afetar os liames do performativo, para que o dito, o escrito e o escutado possam, finalmente, identificarem-se ao "[...] puro efeito de um eco anônimo devolvido pelas bordas [...]" (PÊCHEUX, 2016, p. 28).

2 Linguagem e direito

Propondo-se a responder ao questionamento de como trabalhar (n)a relação entre linguÃÂstica e direito, Sigales-Gonçalves (2020) discerne dois tipos de preocupação. A primeira se refere ao trabalho profissional quanto àmencionada relação. A segunda, ao trabalho teórico entre as duas ciências e seus respectivos objetos, a saber: a lÃÂngua e o direito. A autora, então, define o que seria um objeto advindo de um tal entremeio possÃÂvel: o objeto linguÃÂstico-jurÃÂdico. Em suas palavras:

Compreendemos objetos linguÃÂstico-jurÃÂdicos como objetos relativos a fatos de lÃÂngua (objeto linguÃÂstico) levados àesfera jurÃÂdica (objeto jurÃÂdico), seja para a aplicação na transformação de práticas de instituições jurÃÂdicas e de operadores do direito, seja para a compreensão da estrutura e do funcionamento do Direito (SIGALES- GONÇALVES, 2020, p. 370). Quanto aos possÃÂveis caminhos de definição desse objeto hÃÂbrido, Sigales-Gonçalves indica pelo menos três: a linguÃÂstica forense, o direito linguÃÂstico e a interação em contextos jurÃÂdicos, bem como as análises do discurso jurÃÂdico. A primeira perspectiva trabalha a lÃÂngua como prova para a resolução de litÃÂgios jurÃÂdicos, como, por exemplo: em se tratando de lÃÂngua escrita, casos de atribuição de autoria, verificação de plágio e disputa por nomes de marcas; em se tratando de material sonoro, leva-se em conta os aspectos fonético-acústicos do disfarce da voz, do uso de técnicas acústicas para a verificação do locutor, do efeito do celular no sinal de fala, da prosódia etc. A segunda, ainda em vias de constituição efetiva no Brasil, ocupa-se, em suma, dos direitos e deveres linguÃÂsticos, a partir de práticas diversas de regulação da lÃÂngua e dos falantes em relação a ela. Na terceira, a delimitação do objeto recai sobre a descrição e análise do funcionamento de práticas discursivas, seja a partir dos estudos da fala-em-interação, seja a partir da Análise do Discurso, em suas variadas vertentes.

Aproximando-se da última perspectiva, Warat (1985) percorre as principais tendências desde as quais o direito representa a sua relação com a linguagem: a semiologia saussuriana, o neopositivismo lógico, a filosofia da linguagem ordinária e a nova retórica. A essas, o autor contrapõe a sua proposta, a qual denomina Semiologia do Poder. Segundo ele:

[...] a semiologia do poder pretende analisar a significação como instrumento de controle social, como estratégia normalizadora e disciplinar dos indivÃÂduos, como fórmula produtora do consenso, como estágio ilusório dos valores de representação, como fetiche regulador da interação social, como poder persuasivo provocador de efeitos de verossimilhança sobre as condições materiais da vida social, como fator legitimador do monopólio da coerção e como fator de unificação do contraditório exercÃÂcio do poder social (WARAT, 1985, p. 18). O programa investigativo apresentado pelo autor, desta maneira, visa a desmistificar as diversas práticas discursivas conforme as quais o saber jurÃÂdico se legitima, bem como a destruição dos mitos que o organizam enquanto senso comum teórico (WARAT, 1982). Isso porque Warat compreende que as incidências, no saber jurÃÂdico, de teorias sobre a linguagem respondem àdicotomia saussuriana lÃÂngua/fala (5) e, que a despeito de tentarem desestruturar a doxa linguÃÂstica dos juristas, converteram-na em uma episteme conforme o modelo positivista, isto é, cederam àilusão de uma linguagem purificada, sintática e semanticamente, muito embora tenham revelado questões pragmáticas "[...] com as quais se pretendia ora denunciar as forçosas imprecisões e aberturas significativas das palavras da lei, ora indicar as funções tópico-retóricas da maior parte das noções e categorias do saber jurÃÂdico dominante" (WARAT, 1985, p. 99). Contudo, ainda que tais questões pragmáticas tenham sido visibilizadas, para o autor, há uma comprovada insuficiência analÃÂtica no que se refere àrelação das enunciações jurÃÂdicas com as práticas polÃÂticas e ideológicas da sociedade, bem como quanto às suas próprias dimensões polÃÂticas, do que a semiologia polÃÂtica que propõe se ocupa.

Desde o intento de esboçar uma reflexão sobre a discursividade de constituição, (6) significante que nomeia um objeto linguÃÂstico-jurÃÂdico, nos termos acima discutidos, este trabalho se inscreve, linhas gerais, na terceira perspectiva que situa um objeto desdobrado na relação entre direito e linguagem, a partir da descrição e análise do funcionamento das práticas discursivas jurÃÂdicas. (7) Dessa maneira, tendo em conta que, a priori e em si, uma constituição não diz nada, compreendo, junto com Canotilho (2002, p. 5), que "[...] as 'imagens' e representações do Estado e da Constituição são [...] 'construções intelectuais' e não 'descrições da realidade' [...]" as quais, "[...] devidamente contextualizadas, [...] transportam, desde logo, um ÃÂmpeto polÃÂtico-ideológico particularmente forte".

Aproprio-me aqui da crÃÂtica feita por Warat quanto às incidências tradicionais do saber linguÃÂstico sobre o saber jurÃÂdico, ao que acrescento que tais dão a ver "[...] processos espontaneamente representados-deformados, tornados, propriamente irreconhecÃÂveis [...]" (PÊCHEUX, 2014, p. 80) numa dada conjuntura. Ainda, reinscreverei a noção de senso comum teórico dos juristas (WARAT, 1982), doravante SCTJ, numa perspectiva desde a qual se possa ler as maneiras pelas quais o saber jurÃÂdico se apossa do saber linguÃÂstico convertendo-o em matéria-prima representacional de sua filosofia espontânea da linguagem. (8)

Com respeito, assim, àinstalação de uma escuta analÃÂtica do funcionamento da ilusão epistêmica do direito e que considera a necessidade teórica de se observar a forma como o polÃÂtico e a exterioridade determinam os funcionamentos linguÃÂsticos, subjetivo um dispositivo de investigação que tem a produção de sentido como possibilitada pela inscrição da lÃÂngua na história, compreendendo a metáfora não como desvio lateral, mas condição (uma palavra por outra) de haver encontro do significante com a exterioridade, lugar de...

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