Por uma desobediência não-civil para além do direito/For a non-civil disobedience beyond the law.

Autorde Moura Costa Matos, Andityas Soares

Pois é a decisão que traça no presente a maneira e a possibilidade de agir, de fazer um salto que não seja no vazio. Essa decisão é a de desertar, de sair das fileiras, de organizar-se, de fazer secessão, ainda que seja de modo imperceptÃÂvel, mas, em todo caso, agora. A época é dos tenazes.

(COMITÊ INVISÍVEL, 2018, p. 20)

Introdução (1)

O presente trabalho propõe uma análise do conceito de desobediência polÃÂtica assumindo como ponto de partida sua perspectiva civil e realizando, para tanto, o exame das tradições clássicas que o pensam, quais sejam, a tradição religiosa-espiritual, a tradição liberal e a tradição democrática. Nosso objetivo é demonstrar como tais delineamentos teóricos produzem a captura de movimentos de desobediência tanto por meio da sua vinculação ao direito quanto por meio de sua institucionalização. Dessa forma, na primeira seção do texto demonstramos algumas das razões pelas quais as ações de desobediência civil são praticadas, especialmente quando comparadas aos métodos tradicionais de controle e supervisão do poder polÃÂtico institucionalizado, i.e., do poder polÃÂtico do Estado. Explicamos também a natureza da desobediência civil e as possibilidades por ela apresentadas. Já na segunda seção, as teorias tradicionais da desobediência civil são exemplificadas, tomando-se como referência a classificação criada pelas autoras a partir da leitura dos principais marcos teóricos sobre o tema. Partindo dos escritos do Thoreau (2017), analisamos como a desobediência polÃÂtica passa a ser tratada como civil, tornando-se uma forma de luta não-violenta baseada na ideia de retirada do consentimento e, consequentemente, do apoio aos governantes. Ainda na segunda seção apontamos também as diferenças entre a objeção de consciência e a desobediência civil. A terceira seção, por sua vez, demonstra a forma pela qual a desobediência civil é capturada pela teoria, fenômeno que, a despeito de popularizá-la dentro do espaço de debate da academia, a transforma em um mero instrumento de correção de problemas e injustiças pontuais. Na quarta seção é apresentada a classificação feita pelas autoras a partir dos trabalhos de Scheuerman (2018) e Matos (2017), resultando na classificação das vertentes da desobediência civil entre as tradições religiosa-espiritual, liberal, constitucionalista e anarquista.

Ao final, concluÃÂmos que os limites teóricos impostos pelas autoras que estudam a desobediência civil em sua conceituação clássica e convencional a transformam em um caminho forçosamente institucional na luta por mudanças, limitando-a enquanto um direito, ou seja, uma realidade normativa concedida e externa àqueles que desejam construir a polÃÂtica a partir de suas práticas e experiências próprias. Para tanto, nos valemos do pensamento radical, no contexto do qual este trabalho procura se inserir, não seguindo, portanto, nenhuma metodologia estabelecida a priori. Trata-se de uma constante tentativa de "[...] pensar nosso tempo com nosso tempo [...]" (MATOS, 2014, p. 39), razão pela qual este artigo se esquiva das determinações que hierarquicamente decidem o que é cientÃÂfico e o que não é. Tal como o próprio pensamento radical, os métodos que o acompanham estão sempre em construção, nunca de fato constituÃÂdos. Apenas aceitando essa impermanência enquanto potência utópica pode-se pensar em um projeto capaz de se realizar enquanto prática libertária apta a romper com o que está posto, a fim de que se possa agir no mundo no tempo de agora (MATOS, 2014).

Dessa maneira, o presente artigo, tal como suas autoras, aposta em uma teoria anárquica do conhecimento. Como ensina Feyerabend (1997), o anarquismo é um excelente remédio para os problemas que acompanham a epistemologia e a filosofia. No processo de construção dos saberes, a perspectiva anarquista proporciona o livre desenvolvimento do conhecimento, desembaraçando-o das amarras e das obrigações que geralmente caminham ao lado das metodologias tradicionais. Consequentemente, a anarquista epistemológica não possui lealdade permanente a nenhuma instituição, método ou corrente de pensamento, colocando-se sempre aberta ao horizonte de possibilidades. Entendemos que tal posicionamento é particularmente profÃÂcuo quando se objetiva ir de encontro com a chamada "condição de coerência", segundo a qual toda nova hipótese deve se ajustar às teorias dominantes, impossibilitando assim um saber realmente novo e questionador, (FEYERABEND, 1997) o que é visÃÂvel com especial clareza nas ciências sociais aplicadas, que trabalham muitas vezes com ideias abstratas que rapidamente se tornam hábitos obrigatórios para o pensar.

Dessa maneira, o artigo não oferece nenhuma metodologia prévia e abstrata em relação a seu objeto. Ao contrário, ele aposta na construção de um método dialógico e não linear àmedida em que a argumentação é gradativamente desenvolvida e elaborada por meio de referências e análises a textos e a acontecimentos históricos aos quais se dirigem os primeiros, todos eles indicados e debatidos criticamente ao longo do trabalho. Afinal, "[...] o método não é um conjunto de regras que se assume de antemão e guia de modo seguro e inescapável o pensar" (MATOS, 2014, p. 40). Assim, como já dito, as ideias se desenvolvem simultaneamente àconstrução de seu próprio caminho crÃÂtico-expositivo, ou seja, o "método". O objetivo de tal aposta é que o método não seja autonomizado enquanto um instrumento apto a moldar o conteúdo de uma nova compreensão da desobediência não-civil. Ao contrário, ele deve compor essa teoria, fazendo parte dela sob um olhar crÃÂtico e sendo, obviamente, um método desobediente.

Tal proposta é sem dúvida arriscada. Mas o pensamento radical, as práticas polÃÂticas desobedientes e a própria democracia radical também o são. Todos eles representam a abertura ao porvir e ao lançar dos dados de ações desinstituintes que se recusam a aquiescer com o que é imposto, comandado e verticalmente decidido. Sob o risco de ser considerada como não cientÃÂfica ou até mesmo como não pertencente ao mundo acadêmico, a ideia de desobediência não-civil que se busca esboçar a partir deste trabalho procura se contrapor àteoria dominante da desobediência civil. Trata-se, portanto, de uma alternativa capaz de expandir o campo de análise (e de prática) de um conjunto de saberes situados, buscando evidenciar as propostas que dele podem ser extraÃÂdas e compartilhadas. Eis o convite an-árquico que fazemos às leitoras deste artigo, que se insere em um projeto de pesquisa coletivo muito mais amplo cujo comprometimento com o pensamento livre e a democracia radical pode ser aquilatado em outras das produções coletivas do nosso grupo de pesquisa. (2)

  1. Sobre a desobediência civil

    Ferramentas polÃÂticas institucionalmente legÃÂtimas, tais como eleições, plebiscitos, ações judiciais, programas de participação pública nas tomadas de decisões, por exemplo, não são necessariamente efetivas. Elas são, contudo, os métodos tradicionalmente usados no controle e na supervisão do poder polÃÂtico do Estado e das instituições que o compõem ou se põem ao seu lado, tal como o mercado. Cotidianamente esses métodos convencionais são utilizados por grupos de resistência e por indivÃÂduos que procuram executar algum tipo de mudança na realidade em que vivem quando ainda acreditam na estrutura do sistema polÃÂtico no qual estão inseridos e nos procedimentos formais adotados pelo Estado.

    Quando os métodos tradicionais de controle e/ou resistência ao poder polÃÂtico já não são suficientes para alterar o status quo ou para provocar mudanças concretas e efetivas em resposta às demandas da sociedade civil, a desobediência civil surge como uma possibilidade de luta não-violenta contra as mais variadas formas de opressões existentes. Enquanto ação não-violenta baseada na negação do apoio e do consentimento, a desobediência civil se revela uma alternativa de resistência eficaz, podendo ser utilizada como instrumento apto a modificar e produzir leis, decisões e polÃÂticas públicas. Segundo Hannah Arendt:

    A desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas (ARENDT, 2006, p. 68). Consequentemente, aquelas pessoas que estão convencidas da lentidão, da corrupção ou da ineficácia dos procedimentos legais de participação polÃÂtica ou de controle e resistência ao poder polÃÂtico buscam outras vias de atuação que não as convencionais. As dissidentes se empenham em buscar e construir caminhos alternativos que lhes retirem da posição de passividade.

    A desobediência civil constitui-se como um movimento contestatório que se coloca em face do poder polÃÂtico exercido por uma autoridade, ou seja, em face do poder polÃÂtico estratificado que está, por sua própria configuração, fora do alcance daqueles que não preenchem suas condições de uso e acesso...

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