Uma perspectiva histórica da jurisdição administrativa na América Latina: tradição europeia-continental versus influência norte-americana

AutorRicardo Perlingeiro
CargoProfessor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (Niterói ? Rio de Janeiro, Brasil). Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro ? Rio de Janeiro, Brasil)
Páginas89-136
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Como citar esse artigo/How to cite this article: PERLINGEIRO, Ricardo. Uma perspectiva histórica da jurisdição administrativa na
América Latina: tradição europeia-continental versus inuência norte-americana. Revista de Investigações Constitucionais,
Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 89-136, jan./abr. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rinc.v2i1.43658
* Versão em português do capítulo que integra obra coletiva a ser publicada na Alemanha: SOMMERMANN, Karl-Peter; SCHAFFARZIK,
Bert. Handbuch der Geschichte der Verwaltungsgerichtsbarkeit in Deutschland und Europa. Heidelberg: Springer, 2016.
** Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (Niterói – Rio de Janeiro, Brasil). Doutor e Mestre em
Direito pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, Brasil). Pesquisador convidado do Deutsches Forschungsinstitut
für öentliche Verwaltung Speyer – FÖV (Speyer, Alemanha) (2006-2007). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da
2ª Região (Rio de Janeiro, Brasil). E-mail: r.perlingeiro@terra.com.br
Resumo
Do ponto de vista da inuência norte-americana, o texto
analisa a história da jurisdição administrativa, a partir do
século XIX, dos 19 países latino-americanos de origem
ibérica (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa
Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República
Dominicana, Uruguai e Venezuela). Examina-se o seu
sistema judicial único e o due process of law procedi-
mental e prévio às decisões da Administração, campo
fértil da primary jurisdiction, em choque com a cultura
europeia-continental arraigada no direito administra-
tivo da América Latina. Ao expor as contradições da
jurisdição administrativa nos países latino-americanos,
ocasionadas pela importação de regras sem a devida
contextualização, o texto busca identicar tendências e
Abstract
From the perspective of US inuence, this text analyses the
history of administrative jurisdiction, starting from the 19th
Century, in the 19 Latin American countries of Iberian ori-
gin (Argentina, Bolivia, Brazil, Chile, Colombia, Costa Rica,
Cuba, Ecuador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Mexico,
Nicaragua, Panama, Paraguay, Peru, Dominican Republic,
Uruguay and Venezuela). The analysis includes the US
unied judicial system (generalized courts) and procedu-
ral due process of law to decisions by the administrative
authorities, the fertile eld of primary jurisdiction, which is
in conict with the Continental European tradition rmly
established in Latin American administrative law. While
setting out the contradictions of administrative jurisdiction
in Latin American countries that result from importing rules
without putting them in the proper context, the text seeks
Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rinc.v2i1.43658
Uma perspectiva histórica da jurisdição administrativa na
América Latina: tradição europeia-continental versus
inuência norte-americana*
A historical perspective on administrative jurisdiction in Latin
America: continental european tradition versus US inuence
RICARDO PERLINGEIRO**
Universidade Federal Fluminense (Brasil)
r.perlingeiro@terra.com.br
Recebido/Received: 26.11.2014 / November 26th, 2014
Aprovado/Approved: 19.12.2014 / December 19th, 2014
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Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 89-136, jan./abr. 2015.
Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 89-136, jan./abr. 2015.
Ricardo Perlingeiro
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SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Jurisdição administrativa: modelo judicial, extrajudicial e híbrido; 2.1. Constituição
de Cádiz de 1812. Junta Grande de 1811 (Argentina). Constituição Belga de 1831. Reglamento para
el Arreglo de la Autoridad Ejecutiva Provisoria de Chile (1811). Loi des 16 et 24 août 1790. Ley de San-
tamaría Paredes. Tribunal Administrativo do Land de Baden de 1863; 2.2. Falta de independência
do contencioso administrativo francês e o sistema judicial único na América Latina no século XIX. A
justice déléguée de 1872; 2.3. O sistema judicial único na América Latina do século XIX e as questões
governativas; 2.4. A especialização da jurisdição na Europa e o surgimento do direito administrativo;
2.5. A evolução do sistema judicial único nos EUA: Interstate Commerce Commission (ICC) de 1887;
2.6. Modelos de jurisdição administrativa na América Latina nos séculos XIX e XX; 2.6.1. Jurisdição
administrativa híbrida (judicial e extrajudicial): Honduras, Brasil; 2.6.2. Jurisdição administrativa ex-
trajudicial: Bolívia, Panamá, República Dominicana, Colômbia, Guatemala, Equador, Uruguai, México;
2.6.3. Jurisdição judicial dualista: Colômbia, Nicarágua, Panamá, Equador, Guatemala, República Do-
minicana; 2.6.4. Jurisdição judicial monista (período ininterrupto): Chile, Argentina, Venezuela, Pa-
raguai, México, Costa Rica, Peru, El Salvador, Cuba, Brasil; 2.6.5. Jurisdição judicial monista (período
limitado): Colômbia, Guatemala, República Dominicana; 2.6.6. Jurisdição judicial monista (períodos
intercalados): Nicarágua, Honduras, Equador, Panamá, Bolívia; 2.6.7. Jurisdição judicial monista (atu-
almente em vigor e com órgãos especializados): Chile, Argentina, Venezuela, Paraguai, México, Costa
Rica, Peru, El Salvador, Cuba, Bolívia, Brasil, Panamá, Nicarágua, Honduras e Equador; 2.7. Quadro
evolutivo e comparativo da jurisdição administrativa independente nas Constituições latino-america-
nas; 3. Decisões administrativas precedidas do devido processo legal; 3.1. Sinais do devido processo
legal norte-americano na América Latina: Emendas Constitucionais V (1791) e XIV (1868); 3.2. Origem
do due process of law: Magna Carta de 1215, Liberty of Subject Act (28 Edward 3) de 1354, Obser-
vance of Due Process of Law Act (42 Edward 3) de 1368; 3.3. Right to a fair trial no cenário internacio-
nal: Declaração de Direitos Humanos de 1789, Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950, Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis
e Políticos de 1966, Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981, Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia de 2000, Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969; 3.4.
Devido processo legal administrativo nas Constituições e leis latino-americanas; 3.5. Jurisprudência
das Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos: independência e imparcialidade nos pro-
cessos administrativos não judiciais, e o devido processo legal prévio; 3.6. Distinção entre processo
administrativo judicial, processo administrativo não judicial e procedimento administrativo; 3.7. O
devido processo legal administrativo e prévio às decisões da Administração na América Latina; 4.
Considerações nais; 5. Referências.
despertar a perspectiva quanto à construção de um mo-
delo próprio de justiça administrativa na América Latina,
aproveitando-se das experiências norte-americana e
europeia-continental.
Palavras-chave: História da justiça administrativa; Amé-
rica Latina; Devido processo legal; Processo administrati-
ve; Procedimento administrativo.
to identify trends and create perspective to build a model of
administrative justice specic to Latin America, drawing on
the accumulated experience of the United States and Conti-
nental Europe.
Keywords: History of administrative justice; Latin America;
Due process of law; Administrative proceedings; Administra-
tive procedure.
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Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 89-136, jan./abr. 2015.
Uma perspectiva histórica da jurisdição administrativa na América Latina:
tradição europeia-continental versus inuência norte-americana
1. INTRODUÇÃO
A explosão de conitos de direto público nos tribunais do Brasil1 tem sido
associada a uma falta de identidade do seu modelo de justiça administrativa2, o qual
detém traços do sistema normativo norte-americano apesar do descompasso deste
com a cultura brasileira de direito administrativo, ainda em muitos pontos vinculada
às matrizes francesa e alemã.3 A propósito, Rivero alertava que “mesmo nos aspectos
em que a inuência anglo-saxônica atinge ponto máximo no direito administrativo
latino-americano, ela não parece estender-se à técnica jurídica: as fontes, as catego-
rias e os métodos de raciocínio permanecem os mesmos do direito continental, com
poucas exceções”.4
Na Europa do início do século XIX, muitos consideravam a jurisdição adminis-
trativa como uma atribuição do próprio Poder Executivo, inerente ao seu poder de
autotutela. Mais tarde, ela passa a ser compartilhada entre Administração e tribunais
independentes, de modo que o recurso judicial consistia na segunda instância de uma
jurisdição administrativa originada na Administração. Entretanto, desde os ns do sécu-
lo XIX, prefere-se, na Europa continental, a solução dos conitos administrativos cona-
da unicamente a tribunais independentes que se inclinam à especialização e a poderes
1 “Do total de 83,4 milhões de feitos em tramitação nos tribunais brasileiros em 2009, atingiu-se a marca de
92,2 milhões em 2012; desse total, 28,2 milhões (31%) eram casos novos e 64 milhões (69%) encontravam-se
pendentes de anos anteriores. Ainda em 2012, todo magistrado brasileiro sentenciou, em média, 1.450 proces-
sos, 1,4% a mais que em 2011. Embora os magistrados tenham julgado mais processos a cada ano, o aumento
do total de sentenças (1 milhão – 4,7%) foi inferior ao aumento de casos novos (2,2 milhões – 8,4%), o que
resultou no julgamento em 2012 de 12% de processos a menos que o total ingressado. Não há como precisar o
percentual das causas que envolvem autoridades públicas, porém estima-se que seja a maioria, acima de 50%
do total geral. Há quatro dados que levam a essa conclusão: (i) em 2012, do total de 64 milhões de processos
pendentes de anos anteriores, 39,9% eram de execuções scais, ao passo que, em 2013, dos 66,7 milhões
pendentes, 41,4% consistiam em execuções scais; (ii) nos últimos 20 anos, dos 90% do total dos processos
judiciais em curso no Supremo Tribunal Federal / STF (Corte Constitucional), consta a presença de autoridades
públicas como uma das partes; (iii) dos 693 processos com repercussão geral no STF, 498 deles, isto é, 71%,
versavam sobre direito público (direito administrativo, tributário e previdenciário); (iv) dos 721 recursos de
efeito repetitivo no Superior Tribunal de Justiça / STJ (Corte suprema), 360 dizem respeito a direito público, o
que corresponde, portanto, a 50% do total.” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA [CNJ]. Justiça em números:
2014 [ano base 2013]. Brasília: CNJ, 2014. p. 32 e seguintes apud PERLINGEIRO, Ricardo. O devido processo
legal administrativo e a tutela judicial efetiva: um novo olhar? Revista de Processo, v. 239, p. 293-331, 2015).
2 Necessário assinalar o alcance e o contexto da terminologia utilizada no presente texto. A expressão “con-
tencioso administrativo” se relaciona com as reclamações ou impugnações de um interessado contra com-
portamentos de uma autoridade administrativa. A expressão “jurisdição administrativa” serve para designar
a prestação jurisdicional destinada à solução de um contencioso administrativo, e “justiça administrativa” se
refere aos órgãos estatais responsáveis por essa atuação jurisdicional (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE.
Núcleo de Ciências do Poder Judiciário. Projeto Acadêmico do Programa de Pós-Graduação Justiça Admin-
istrativa – PPGJA/UFF. Niterói, 2008. Disponível em: ).
3 Ver PERLINGEIRO, Ricardo. O devido processo legal administrativo e a tutela judicial efetiva: um novo olhar?
Revista de Processo, v. 239, p. 293-331, 2015.
4 RIVERO, Jean. Curso de direito administrativo. São Paulo: RT, 2004. p. 221.

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