Venda de ascendente para descendente

AutorCarlos Augusto de Assis
Páginas39-53

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1. Generalidades A origem histórica do preceito

A iminência da aprovação de um novo Código Civil dá um colorido especial à discussão deste tema. É por isso que este estudo, que analisa, fundamentalmente, doutrina e jurisprudência formadas a partir do vigente Código Civil Brasileiro, preocupa-se, também, em chamar atenção para legislação projetada, que pode até vir a provocar alterações na orientação ora dominante, relativamente às questões que a matéria envolve.

E, na verdade, é bastante longa a lista de questões que o tema suscita, muitas vezes de difícil solução e que geram polémica entre os que se dedicam a estudá-las. A base de tanta controvérsia, porém, é apenas um artigo, o 1.132, do Código Civil Brasileiro, que desde logo, enunciamos: "Art. 1.132. Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam".

Tenha-se presente, antes de mais nada, que o tema em apreço, em que se pese estar inserido na seara contratual, tem forte ligação com o Direito Sucessório. É o que se pode notar da justificativa apresentada pelos doutrinadores para a existência do aludido preceito civil. Diz Clóvis Beviláqua:1 " A razão desta proibição é evitar que, sob color de venda, se façam doações, prejudicando a igualdade das legítimas".

Tem razão, entretanto, Agostinho Alvim,2 quando pondera: "Os autores, em geral, explicam que o dispositivo em análise tem por finalidade impedir a desigualdade das legítimas (Clóvis, João Luís Alves, Carvalho Santos etc).

"Mas essa explicação não se compadece com o sentido que na escola se atribui ao termo legítima.

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"Com efeito, quando alguém tem herdeiros necessários, metade de seus bens compõe o seu disponível; a outra metade pertence necessariamente aos herdeiros forçados.

"Ora, a venda de pai a filho é nula, segundo uns, ou anulável, segundo outros, ainda mesmo que de modo algum comprometa a legítima dos filhos que não concordaram. (...).

"Como se vê, o que preocupa o legislador não é a desigualdade das legítimas, e sim, dos valores. (...)

"O que o artigo visa, portanto, é resguardar a igualdade dos herdeiros (dos quinhões) ..."

Não há dúvida, de qualquer modo, que a raiz do problema está no capítulo das Sucessões.

Outro aspecto que se deve observar é o de que, no tocante à restrição3 em comento, a lei não faz distinção entre bem móvel ou imóvel, de tal sorte que em ambos os casos ela prevalece igualmente.4

Quanto à origem histórica de tal proibição remonta às Ordenações Manuelinas, onde se cominava de nulidade a venda aos descendentes sem o consentimento dos outros descendentes.5

Tal regra, mais tarde foi reproduzida, nos mesmos termos, nas Ordenações Filipinas:6 "Por evitarmos muitos enganos e demandas, que se causam e podem causar das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes, determinamos que ninguém faça venda alguma a seu filho ou neto, nem a outro descendente. Nem, outrossim, faça com os sobreditos de troca, que desigual seja, sem consentimento de outros filhos, netos, ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito vendedor".

2. O significado do artigo 1 132
2. 1 A posição do descendente

Nossa lei fala de venda7 para "...descendente..." e em consentimento dos demais (ou seja, dos outros descendentes). No primeiro caso, parece claro que o legislador teve em mira não somente os filhos, mas também os netos, bisnetos (parentes em linha reta descendente).

É assim o entendimento de Agostinho Al vim:8 "O texto não se limita à venda de pais a filhos, mas de ascendentes a descendentes".

Mas, no que tange ao consentimento, a solução deve levar em conta que a ratio do dispositivo, como foi mencionado acima, se encontra no Direito Sucessório.

Desse modo, o consentimento deve ser obtido, em primeiro lugar, dos filhos (sendo que se um dos filhos for pré-morto, seus filhos terão que manifestar consentimento como se fosse direito de representação).9 Somente não havendo filhos é que se bus-

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caria o consentimento dos netos e assim por diante, observadas as regras da sucessão.10

Cogita a doutrina a respeito da necessidade ou não de consentimento do nascituro. Débora Gozzo11 assim se manifestou a respeito:

"Descendente Nascituro - não há como negar a necessidade de se nomear um curador especial para o nascituro, que assinta ou não em seu lugar, a fim de resguardar-lhe os direitos no caso de compra e venda entre seu ascendente e um outro descendente. Afinal, se ele pode até ser herdeiro testamentário (CC, art. 1.718), nada mais justo que lhe seja nomeado um curador para esse ato".

Ao lado dessas dúvidas, outras foram surgindo, também alusivas ao significado de "descendente", na dicção legal. Estariam aí incluídos os genros e noras? A resposta pode ser diferente conforme se trate de aquisição pelo(a) genro/nora ou de se obter o consentimento destes no caso de venda a outro dos filhos.

No primeiro caso, há que primeiro indagar qual o regime de bens (se for comunhão universal ou parcial, a venda, na verdade, também estará sendo feita ao descendente,12 não havendo dúvida quanto à incidência da proibição. Já a venda efetuada a genro/nora casado(a) no regime de separação total de bens a questão gera dúvidas. Há quem entenda que em tais casos se aplicaria a restrição legal, pela existência de provável fraude.13

Quando, porém, se tratar de obter consentimento do "descendente", aí não estariam incluídos os genros e noras, pois esse é "...um direito personalíssimo, não se comunica nem mesmo ao cônjuge, sendo também incedível."14

O item suscita ainda outras dúvidas. O filho que viesse a ser reconhecido posteriormente à venda (e que, portanto, sobre ela não se manifestou) poderia pleitear a anulação do contrato com base no art. 1.132 do Código Civil Brasileiro? Parece-nos que não. Não se pode exigir o consentimento de alguém que, à época nem se sabia existente. É como leciona Natal Nader:15 "Quanto ao ilegítimo ainda não reconhecido à época da venda, prescinde-se de seu

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consentimento, não advindo disso qualquer nulidade. E ainda que, posteriormente, ocorra o seu reconhecimento, tal ato não pode ter efeito retroativo, de modo a comprometer uma venda juridicamente perfeita, consumada quando ele não gozava da condição de filho, em face do direito, e, portanto, não poderia ser chamado a manifestar-se".

Ou, ainda, Adahyl Lourenço Dias:16 "Julgada procedente a ação declaratória de paternidade ilegítima, movida contra o ascendente, os efeitos da declaração da filiação não comprometem as vendas efetuadas pelo pai investigado aos seus descendentes, antes da declaração. Não tem efeito retroativo de forma a invalidar ou tornar comprometido um ato jurídico consumado anteriormente, pois, dele não poderia constar a anuência de um novo filho reconhecido por ato posterior".

É o que também decidiu o Supremo Tribunal Federal, como se nota de trecho do acórdão relatado pelo Ministro Francisco Rezek:17 "A evolução da doutrina tendenciando dar ao filho reconhecido ou legitimado as mesmas prerrogativas do legítimo, com leves exceções, veio a favorecer-lhe, inclusive, no uso do cognome paterno, bem assim nivelando aos legítimos a quota hereditária em igualdade de condições. São direitos que provêm de fonte declaratória da paternidade, sem retroagir em ginástica golpeante de rabo-de-arraia, para invalidar situações de direito consolidadas em ocasião em que as prerrogativas nascidas do reconhecimento gravitaram" (RE 103.513-MG, 13.12.85).

Ou, mais adiante, de forma clara e bastante significativa: "a surpresa provinda de um fato novo não pode operar nulidade do contrato encetado de boa-fé, em ocasião em que se desconhecia aquela circunstância" (idem).

2. 2 O consentimento e sua manifestação Suprimento

Deve ser "expresso" o consentimento, segundo o indicado preceptivo.18 Isto excluiu a hipótese de consentimento "tácito". Mas, o consentimento "expresso" pode ser oral ou escrito. Não se elimina, apriori, a possibilidade de o consentimento ser manifestado oralmente.

Outras normas, porém, incidindo sobre a questão terminam por quase afastar a alternativa de assentimento simplesmente oral. Vejamos:

- no atinente a imóveis, como a venda - em regra - deve ser feita por escritura pública (art. 134, II, CCB), e a anuência para o ato, segundo preceitua o art. 132, "provar-se-á do mesmo modo que este", conclui-se que em tal hipótese o consentimento do descendente deve ser manifestado por escrito (e na forma pública);19

- no referente a imóveis, é necessário o consentimento por escrito (ou, pelo menos, começo de prova escrita) se o valor envolvido for superior ao décuplo do maior

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salário mínimo vigente no país (cf. art. 401, CPC).

É de se indagar, ainda em termos de consentimento, qual a solução para os casos em que este é negado. É possível obter-se suprimento judicial?20

Washington de Barros Monteiro21 manifesta-se pela negativa: "Se um dos herdeiros recusa seu assentimento, não pode o juiz supri-lo, a pedido dos demais interessados, porque a lei não lhe confere tal direito".

Não é desarrazoada, todavia, a interpretação de Sílvio Rodrigues22 no sentido de que, embora a lei não fale expressamente...

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