O acesso coletivo à justiça e a justiça do trabalho

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2. O ACESSO COLETIVO À JUSTIÇA
E A JUSTIÇA DO TRABALHO
Para melhor entender a conflituosidade de grupos e de massa, é importante
esclarecer o que vem a ser o sistema de Justiça. A análise dos conceitos sociológicos
será importante. Aprofundar a visão desse s istema sobre a conflituosidade de
massa para a melhor harmonia do ordenamento jurídico, as políticas públicas a
ele afetas e sua organização também é imprescindível ao desenvolvimento desta
pesquisa.
O processo coletivo, como a contemporaneidade o entende, tem origem
remota, com importantes exemplos de reivindicações intentadas por grupos de
pessoas ou contra eles. Esses antecedentes ajudam a construir as leis atuais, mas
também formam uma base histórica para a doutrina, por isso serão tratados
neste capítulo. O modo de organização do Poder Judiciário brasileiro para atender
a essas demandas, já que não existe uma codificação própria, ajuda-nos a ver
como a doutrina foi importante para o entendimento do chamado sistema ou
microssistema de acesso coletivo à Justiça, do seu desenvolvimento na área
trabalhista e do seu objeto.
2.1. O SISTEMA DE JUSTIÇA: POLÍTICAS DE COMBATE À
CONFLITUOSIDADE E O ACESSO COLETIVO
O chamado sistema de Justiça pode confundir-se com o Poder Judiciário em
alguns momentos, mas é considerado um conceito mais amplo do que a simples
organização dos órgãos e a estrutura desse Poder Estatal. O sistema de Justiça é
composto pelas políticas públicas judiciais que influenciam a forma de aplicação
das normas jurídicas por meio de uma estrutura organizacional construída pelo
Estado e distribuída entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, com seus
Conselhos Nacionais, e também pela estrutura pública e privada da advocacia,
além do jurisdicionado.
Boaventura(98) aponta três funções básicas do sistema de Justiça: instru-
mental, política e simbólica. Com a função instrumental, o Poder Judiciário e o
(98) SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Los tribunales
en las sociedades contemporáneas. Pensamiento Jurídico, [s.l.], n. 4, p. 5-38, 1995. Disponível em:
. Acesso em: 10 mar. 2021.
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Ministério Público são os principais locais de solução de conflitos.(99) A essa ideia,
acrescentam-se as câmaras de solução de conflitos por meio da arbitragem e da
mediação, no âmbito da advocacia.
A função instrumental é conferida ao juiz para a solução de litígios, a admi-
nistração e a criação de direitos, além da aplicação dos instrumentos jurídicos de
controle social. Esses instrumentos asseguram a manutenção de uma ordem na
sociedade e a recuperação do direito violado para que as ações individuais não se
desviem de modo significativo do padrão fixado de sociabilidade.(100) A criação dos
direitos, na visão de Cappelletti, é ínsita ao Judiciário, que, ao interpretar, o faz com
a criação limitada pela lei, mas que continua a significar a criação de direitos.(101)
Na visão de Boaventura, a função política diz respeito à instituição de meca-
nismos de controle social, mas também à consciência dos direitos e à afirmação da
capacidade de reivindicá-los. Expressão de exercício da cidadania e da participação
política. Essa função está atrelada à instrumental, pois a morosidade, o acesso e o
custo judicial são reflexos da capacidade ou da incapacidade de resposta da fun-
ção política do sistema de Justiça.(102) Na realidade, a função política é mais ampla
e encontra-se dentro de um sistema maior, que se insere na própria existência do
Estado.
Por função simbólica, entende-se a maior eficácia das garantias processuais,
a imparcialidade e a possibilidade de recursos como visão externa da sociedade
sobre o sistema de Justiça. “En términos simbólicos, el derecho procesal es tan
substantivo como el derecho substantivo”(103). Por isso, a falta de acesso à Justiça,
a impunidade, o custo do processo e a morosidade — desempenho instrumental
deficiente — afetam a imagem, como símbolo do sistema.(104) Acresce-se ao conceito,
a necessária disseminação do sentido de equidade e de justiça na vida social,
além da socialização da expectativa dos atores na interpretação do ordenamento
jurídico, calibrando padrões vigentes de legitimidade na vida política.(105)
(99) FARIA, José Eduardo. O sistema brasileiro de Justiça: experiência recente e futuros desafios.
Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, p. 103-125, ago. 2004. Disponível em:
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 9 mar. 2021.
(100) SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Los tribunales
en las sociedades contemporáneas. Pensamiento Jurídico, [s.l.], n. 4, 1995, p. 33. Disponível em:
. Acesso em: 10 mar. 2021.
(101) CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 20-27.
(102) SANTOS; MARQUES; PEDROSO, op. cit., p. 35.
(103) Ibidem, p. 36.
(104) Idem.
(105) FARIA, José Eduardo. O sistema brasileiro de Justiça: experiência recente e futuros desafios.
Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, p. 103-125, ago. 2004. Disponível em:
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 9 mar. 2021.
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As três funções estão entrelaçadas, influenciando e sendo influenciadas umas
pelas outras, compõem não só o aspecto repressivo de manutenção de uma ordem
posta por meio de normas jurídicas, mas também uma ordem social prospectiva e
pedagógica de alteração de um status quo social rechaçado pelas políticas públicas
instituídas pelo Estado e por esse sistema.
A ideia de sistema utilizada no texto não é uma ideia fechada de um subsis-
tema político ou estatal, como proposta na teoria sistêmica de Luhmann.(106) Esse
não é um sistema fechado, autopoiético, que apenas observa as alterações dos
demais. O sistema de Justiça influencia e é influenciado também pelos demais
sistemas — políticos, sociais e econômicos.
O sistema de Justiça tem base constitucional. Sua função primordial é atuar
como concretizador de um modelo de Estado e de sociedade, por meio da solução
de conflitos de modo repressivo, prospectivo e pedagógico. Repressivo por meio
de suas decisões, que não só aplicam a normatização pátria, mas nessa aplicação
focam o futuro da sociedade com viés educativo, a fim de contribuir com o
modelo de Estado pretendido e fixado na Constituição Federal de 1988, no caso
contemporâneo do Brasil. Nesse contexto, surgem as políticas judiciais a serem
aplicadas para a manutenção da ordem social e para a educação de todo um povo,
moldando os atos desse povo, conforme o que se espera do projeto de nação.
A ideia evolucionista das três ondas do acesso à Justiça de Cappelletti — 1) a
ampliação da gratuidade de justiça para fazer frente ao alto custo do processo, 2)
a representatividade coletiva para conflitos repetitivos e de massa e 3) a ampliação
e a aplicação de métodos de conciliação e de mediação como outras formas
adequadas de solução efetiva da lide(107) — pode ser relacionada com a evolução
dos direitos de Bobbio(108).
Em apertada síntese, a primeira geração(109), melhor dizendo dimensão, refe-
re-se ao Estado Liberal e à conquista de direitos de cidadania, com absenteísmo do
(106) Sobre o tema, conferir: LUHMANN, Niklas. Stato di diritto e sistema sociale. Napoli: Guida
Editori, 1978. p. 58 et seq.; FAVA, Marcos Neves. Teoria dos sistemas: sistemas operativos fechados:
posição do poder normativo da Justiça do Trabalho no sistema jurídico. Revista de Direito do
Trabalho, São Paulo, v. 33, n. 128, p. 103-124, out./dez. 2007; CAMPILONGO, Celso Fernandes.
Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002.
(107) Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1998.
(108) Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. 16. tir. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
(109) Não se pode olvidar a crítica ao termo “geração”, realizada posteriormente por Bonavides,
que melhor reflete a fluidez dessas conquistas no tempo e no espaço. “[...] o vocábulo ‘dimensão’
substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a traduzir
apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes,
o que não é verdade” (BONA VIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 571-572).

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